São Paulo, segunda-feira, 4 de setembro de 1995
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Uma espantosa segurança

JORGE COLI
HISTÓRIA SOCIAL DA ARTE E DA LITERATURA

Arnold Hauser Tradução de Álvaro Cabral Martins Fontes, 1.032 págs. R$ 45,00
"... mas não tinha figuras nem diálogos,
'e de que serve um livro' -pensou Alice-
'sem figuras nem diálogos?"'
(Lewis Carrol, "Aventuras de Alice no País das Maravilhas")

Chega-nos, num severo volume de capa preta e de mil páginas, a "História Social da Arte e da Literatura", de Arnold Hauser. A edição original, alemã, data de 1953. Uma inenarrável apresentação, na contracapa, traduzida do "Deutsche Literaturzeitung", informa-nos que o autor avalia "as importantes escolas de sociologia burguesa européia e americana, de Taine, Max Weber, Dilthey, Troesch, Simmel, Sombart, Veblen até Karl Mannheim, Levin Schcking e outros críticos. Hauser, além desses pesquisadores burgueses, examina também Marx, Engels, Mehring, Kautsky, Lênin e Georg Lukács. Sinalização impecável.
Trata-se, em verdade, de um manual, cujo projeto é, no entanto, mais ambicioso, indo além do mero compêndio, pois pretende traçar uma história das artes a partir de uma interpretação "científica", sociológica, desde o homem das cavernas até o nosso século. As manifestações artísticas e literárias encontram ali suas explicações, necessárias e completas, através de uma história regida pelos parâmetros da sociologia. Já as primeiras frases do livro, que encabeçam o capítulo consagrado ao período pré-histórico, dão-nos a dimensão da confiança depositada pelo autor no seu instrumento intelectual: "A lenda da Idade do Ouro é muito antiga. Não conhecemos exatamente qual é a razão sociológica da veneração pelo passado; talvez tenha raízes na solidariedade tribal e familiar, ou no empenho das classes privilegiadas em basear seus privilégios na hereditariedade". O tom de domínio do objeto foi dado: tudo possui razões sociológicas, que às vezes conhecemos exatamente, às vezes não, mas que certamente poderemos chegar a descobrir.
Como se vê por esta primeira frase, a luta de classes começa na noite dos tempos: os privilegiados do paleolítico já fabricavam os seus ardilosos instrumentos ideológicos. A lenda da Idade do Ouro é um deles, que carrega, por sinal, um fator implicitamente reacionário. Como é sabido, a história da humanidade se faz por avanços. Ela está, portanto, voltada para o futuro, e a Idade de Ouro, em verdade, é prometida com o término da própria história, quando, numa sociedade enfim sem classes, os homens -e as mulheres também, é claro- serão felizes para sempre. Colocar a Idade de Ouro no passado longínquo só pode ser uma perfídia das classes dominantes.
Se se quiser tomar um exemplo que ilustre o longo percurso dos fracassos marxistas e sociológicos no âmbito das interrogações sobre os produtos da cultura, a obra de Hauser é exemplar. Entendamo-nos bem: nem todos os trabalhos marxistas sobre a cultura foram fracassos -embora, nestes casos, eu esteja tentado a supor que se trate não tanto de trabalhos marxistas quanto de trabalhos de marxistas. Existe, todavia, um certo tipo de interpretação sumária e mecânica, que invadiu o mundo das artes e da literatura, muito abundante, baseado em convicções calorosas, em cientificismo crédulo ou oportunista, capaz de destruir mesmo empreitadas intelectuais sinceras e fundadas.
É justamente por isso que o livro de Hauser se revela exemplar. O autor, sem dúvida, é um erudito, cuja familiaridade com uma vasta bibliografia teórica é evidente, apresentada como apoio para cada passagem. Algo muito mais sólido do que os falsos achados de Pierre Francastel, outro sociólogo seu contemporâneo, para não mencionar o absoluto desastre que é o "História da Arte e Luta de Classes", de Nicos Hadjnicolau. A erudição, entretanto, é incapaz de oferecer barreiras para os esquemas generalizantes que presidem à obra, esquemas por natureza inadequados para objetos que instauram, dentro da cultura, o princípio da singularidade.
Se tentamos entrar nas análises ali propostas, as contestações são difíceis, pois o campo da generalidade, em Hauser, oscila entre a evidência patética e a certeza baseada em conceitos que ele parece dominar, mas que, à luz das obras, adquirem fortes reflexos absurdos. Tomemos o início do capítulo "Revolução e Arte". Primeira frase: "O século 18 está cheio de contradições". Sem dúvida. Como todos os outros séculos, aliás. Segunda frase: "A questão não se resume ao fato de sua atitude filosófica oscilar entre o racionalismo e o anti-racionalismo, mas também seus objetivos artísticos são dominados por duas tendências opostas e ora se avizinham de uma concepção pictórica estritamente classicista, ora de uma concepção muito mais irrestrita". Aqui, é impossível evitar a perplexidade: um século que possui atitudes filosóficas, que além disso são oscilantes, entre racionalismo e anti-racionalismo. Se estivéssemos efetivamente dentro da história, perceberíamos que esse binômio se dissolve e se ramifica, no pensamento e nas práticas efetivas dos homens. Mas, além de ter atitude filosófica, o século possui ainda objetivos artísticos, também binários e opostos. O século funciona então como um pêndulo: ora vai para uma "concepção estritamente classicista" -como se percebe, o classicismo, para Hauser, embora estrito, paira vagamente indefinido, fora do tempo, a ponto de julgar dispensável a definição habitual de neoclassicismo, quem sabe por ser demais histórica?-, ora para uma concepção "muito mais irrestrita". Pano rápido.
É desnecessário insistir em passagens inacreditavelmente confusas, em "pérolas" irritantes, em afirmações dogmáticas. Certas intuições originais poderiam revelar-se fecundas, no entanto, se livres da camisa-de-força das generalizações e preconceitos. Quando elas existem, porém, tornam-se imediatamente estéreis.
A bibliografia oferecida por Hauser em suas notas é, por ela mesma, muito significativa: maioria esmagadora de livros teóricos ou ensaios, poucos livros de história da arte e da literatura, nenhum romance, nenhum livro de poesia, nenhum estudo específico sobre um pintor, um arquiteto, um escultor -ou tão pouco numerosos que na massa imensa se tornam invisíveis. Por contraste, é suficiente lembrar pensadores como Spitzer ou Starobinski, Panofsky ou Longhi, para, através de modos muito diversos, perceber o quanto os projetos fecundos de interpretação da cultura se ligam e partem dos objetos. Melhor: a admirável e longa trajetória apresentada pelo "Mimesis", de Auerbach, dirigida por uma tese em verdade simples, é enriquecida pela multiplicação de exemplos, pela análise dos textos, que solicitam discussão, que estimulam a curiosidade, que permitem a discordância. Ao contrário, existe no livro de Hauser uma sedução fortíssima, mas sinistra: tudo é explicado, compreendido, nada foge a uma elucidação que não duvida de si e que não admite que os objetos lhe escapem. Aliás, em verdade, não há objetos. Para que a coerência, sumamente estruturada, se mantenha, a palavra se alimenta da palavra, envolve-se em si mesma.
Este livro sobre artes não comporta uma ilustração, não se atarda sobre uma obra. Este livro sobre a literatura não se digna incorporar exemplos. Seu autor parece não imaginar que os objetos artísticos possam guardar zonas de sombra e de mistério. Nem poderia: estas zonas são, em verdade, um fator subversivo para todas as certezas totalizadoras. Quanto a imaginar que quadros e poemas, romances e catedrais funcionem, eles próprios, como sujeitos interpretativos dos homens e de sua história, que eles sejam outra coisa além de produto e sintoma das condições sociais que os teriam engendrado, é impossível, pois, neste caso, o autor teria, necessariamente, que lhes fazer apelo.
A leitura desta história social da arte e da literatura, poderá, eventualmente, oferecer um sentimento de satisfação, pois ela proporciona uma espantosa segurança. Ela é um excelente guia num terreno sem segredos. Fica forçoso, porém, esquecer que o terreno foi desbastado de antemão e que o livro fez, inteiramente, economia das artes, da literatura, da cultura, que a segurança por ele engendrada se origina no seu fechamento sobre si próprio. Ele não pode abrir o sólido arcabouço, sob pena de revelar o vazio que contém, sob pena de destruir-se pela simples presença de seu suposto objeto; consequentemente, ele retira os estímulos, anestesia o leitor com as palavras que o envolvem e protegem, oferece a sensação de um tranquilo domínio, ocultando, de fato, aquilo sobre o que discorre. Só mesmo as obras de arte, na complexidade insubmissa que lhes é própria, permitem a desobediência a essas interpretações soberanas, revelando o vazio dos conceitos e a fragilidade dessas sínteses que se querem poderosas.

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