São Paulo, segunda-feira, 4 de setembro de 1995
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O estadista inescrupuloso

LUÍS NASSIF

A coluna "Collor e o exorcismo da imprensa" deflagrou dois tipos de reações contrárias. Uma, a respeito da última linha da coluna, que atribui ao ex-presidente o início da modernização no país -contra a qual se insurge meu colega Clóvis Rossi, sintetizando com competência os argumentos contrários à tese. Outra -do ombudsman Marcelo Leite-, contra as críticas que formulei ao comportamento da imprensa no episódio.
Por questão de espaço, respondo inicialmente às colocações sobre o papel político de Collor.
Rossi nega a Collor o papel de pai da modernidade brasileira baseado em dois argumentos centrais:
Porque ele é um inescrupuloso. E um inescrupuloso não pode ser tratado como estadista.
Porque todas as idéias de Collor já tinham sido desenvolvidas por Margaret Thatcher, na Inglaterra, e adotadas, entre outros países, pelo México.
Rossi é partidário da tese de que todo grande homem público precisa ser necessariamente um virtuoso.
Esse tema foi levantado na França nos anos 40, quando os franceses descobriram que um de seus mais importantes personagens históricos -Mirabeau- na adolescência não passara de um estróina, que roubara o pai, sequestrara donzelas e fora preso inúmeras vezes por não pagar dívidas.
Só que esse mesmo personagem ajudara a salvar a Revolução Francesa, ao surgir quase que do nada e dar um rumo à Assembléia Constituinte, que ajudou a definir o novo Estado francês.
O fato de ter sido um estróina não era suficiente para reduzir seu papel histórico. Assim como o papel histórico não era atenuante para os inúmeros crimes que cometera.
Então, separemos alhos de bugalhos. É possível, e mais frequente do que se imagina, homens dotados das virtudes maiores do Estado e de nenhum pingo de escrúpulo. E a discussão é sobre o homem público.

Mundo real
O segundo ponto levantado por Rossi é que não há originalidade nas idéias de Collor, que já haviam sido implantadas por Thatcher. Ora, não se está discutindo o pensador Collor, mas o homem de ação.
Hoje em dia, é fácil aceitar a modernização do país como dado quase óbvio e inevitável. Mas como era naquele fim de 89?
Na área industrial, interesses anacrônicos consolidados atrás da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo e das centrais sindicais impediam qualquer liberalização no comércio exterior e no aparato de regulamentos protecionistas de toda espécie.
No mercado financeiro, espalhara-se a crença de que qualquer alteração na política cambial, nas extraordinárias remunerações do overnight ou no fim das aplicações ao portador jogaria o país numa hiperinflação.
Os partidos políticos -principais agentes de transformação do Estado- jaziam presos a imediatismos de toda espécie. Os acadêmicos do PSDB só conseguiam pensar naquilo -pacotes econômicos recorrentes contra a inflação inercial.
Os unicampistas que alimentavam o PMDB só sabiam defender a moratória da dívida externa e a reserva de mercado da informática e de tudo o mais. Os liberais do PFL só falavam em recessão para pagar a dívida externa. Os do PT tentavam revogar o mercado.
Era um autêntico país de botocudos, imerso em medos de toda espécie. Temia-se a "poderosa Fiesp" (como se dizia na época), a indústria automobilística, o sistema financeiro, as centrais sindicais, os partidos políticos, os dogmas econômicos e tudo o mais. Até respirar assustava.
Qual o político que iria romper com esse nó górdio? Ulysses? Quércia? Lula? FHC? Covas? Afif? Dom Sebastião? Esse era o mundo real da época, ou não? Era um mundo que antes produzira Figueiredo e Sarney e, depois, geraria Itamar.

Idéia e ação
A transformação do país demandava dois lances de extrema competência e ousadia. O primeiro, a intuição de escolher as idéias mais acertadas, superando o oceano de mitos da época.
Dizer que o discurso de posse de Collor era de José Guilherme Merquior não tira em nada o mérito da escolha. Collor não é o pensador, mas o homem de ação, basicamente intuitivo, como todo estadista. E conseguiu escolher o caminho que hoje é hegemônico no país, contando basicamente com sua intuição, num momento em que a maioria do ambiente intelectual do país não avançava além de moratórias e recessões.
Para tirar a prova dos nove, basta um bom apanhado dos artigos e declarações que povoavam a imprensa na época. Será fácil conferir como tudo o que era atual na época pouco depois virou inexoravelmente velho, mas só depois da posse e do novo discurso trazido por Collor.
O mérito maior de Collor foi a ousadia (até o limite da imprudência) de romper com todos os limites do pacto corporativo que impedia qualquer passo do país na época.
Muitas vezes, essa ousadia resultou em desastre, devido à falta de quadros técnicos, ao pouco discernimento que marcou as primeiras indicações do governo e ao bando de assaltantes que pulou no estribo do bonde collorido.
Mas foi esse componente de ousadia e o compromisso em romper com o estabelecido que permitiram a Ibrahim Eris mudar a política cambial e a clandestinidade que marcava o mercado financeiro; a Antônio Maciel e seus companheiros trazer para o ambiente das empresas a religião da produtividade e da qualidade e implementar os princípios de abertura comercial; à privatização converter-se em valor maior (em que pesem os prejuízos nas vendas de estatais); e a Vicentinho assumir o papel que assumiu na câmara setorial (o que foi Vicentinho no governo Itamar ou agora, mesmo ocupando cargo mais elevado?).
Está bem, havia Magri, Santana, Tuma. E, se Collor fosse mesmo bom, não teria sido apeado do poder. Ainda bem. Se Collor tivesse sido bem-sucedido até o final, provavelmente teríamos produzido um ditador.
Tudo isso não tira seu mérito de ter sido o pai do "aggiornamento" brasileiro.

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