São Paulo, segunda-feira, 4 de setembro de 1995
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Cinema stalinista é baú que se abre

Festival exibe tesouros da ex-URSS

AMIR LABAKI
ENVIADO ESPECIAL A VENEZA

A celebração do centenário, ou melhor, certa omissão frente a ela, arremessou as primeiras flechas em Veneza-95 contra o seu diretor geral, Gillo Pontecorvo, o cineasta engajado de "A Batalha de Argel" e "Queimada".
Parte da imprensa italiana argumenta, com certa razão, que falta a essa 52ª mostra uma retrospectiva de maior fôlego em homenagem à efeméride. Algo com a dimensão das grandes mostras recentes sobre Hollywood pré-codigo Hays, ou sobre o cinema soviético pré-Stalin.
Pontecorvo defende-se dizendo que os cem anos do cinema são lembrados um pouco em todas as sessões e especialmente pelo ciclo "Um Século Que Se Vê".
É exatamente essa mostra que acende a mais justa polêmica. A seleção resume-se a oito títulos, todos europeus, sendo três de curta-metragem ("Noite e Neblina" de Resnais, dois documentários de início de carreira de Joris Ivens). O ponto alto são versões recém-restauradas de "Senso" de Visconti e "Voyage au Congo" de Marc Allegret e André Gide.
Qual o critério? O festival fala numa vaga representatividade do cinema que retratou a evolução social e histórica deste último século.
Até sob este enfoque, o argumento não cola. A impressão que fica é a da opção preguiçosa e facilitária.
Se frustra a retrospectiva principal (qualidade dos filmes à parte), fortalecem-se as homenagens fragmentárias, principalmente as incluídas na mostra paralela "Janela Sobre a Imagem", como os documentários metacinematográficos e, sobretudo, a retrospectiva de filmes russos de animação, realizados entre 1939 e 1970 tendo a guerra por tema central.
São treze autênticos tesouros de cinemateca, virtualmente desconhecidos no Ocidente, tornados acessíveis apenas pela abertura dos arquivos após a dessovietização.
O discurso é sempre o mesmo -morte ao nazifascismo, viva o progresso socialista da URSS- mas os estilos são bastante variados. Há o tradicional desenho animado de traços limpos e arredondados, na escola Disney, como "O Caçador Fedor" (1939) de Aleksandr Ivanov.
É marcante o grafismo ainda mais direto e expressionista, como o de Dmitri Vabicenko ("Página de Guerra", 1938). Ivan Aksenduk, já nos anos 50, combina com originalidade material desenhado e cenas de arquivo em "Nossa Terra" (1957).
O recorte temático não abriu qualquer brecha para o abstracionismo.
Algumas imagens irmanam tendências das mais distintas. Os nazistas recebem invariavelmente tratamento zoomórfico, enchendo as telas de urubus, jacarés e hienas.
Os burgueses, sinônimo de industriais, parecem extraídos de charges de George Grosz.
O elogio à máquina reina absoluto. Do auge da guerra à modorra brezneviana, a propaganda vende o mesmo otimismo sob o símbolo da "potente locomotiva do socialismo".
O baú cinematográfico da ex-URSS ainda tem muito a revelar.

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