São Paulo, terça-feira, 5 de setembro de 1995
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Collor e a Escola Base

LUÍS NASSIF

O colunista pretendia adiar um pouco mais a discussão inevitável sobre o papel da imprensa no caso Collor. Mas, já que se punçou o tumor, vamos em frente.
Hoje em dia, o caso da Escola Base é reconhecido como um dos mais vergonhosos episódios da história da imprensa brasileira. Durante semanas, donos de uma pequena escola paulista foram alvos de intensa campanha, na qual eram acusados de abusar sexualmente de crianças de quatro anos. Mais tarde, constatou-se que as acusações eram falsas. Não a tempo de evitar o massacre dos acusados.
Aparentemente, ao defender a atuação da imprensa no episódio Collor contra críticas desferidas pela coluna, o ombudsman da Folha Marcelo Leite não se deu conta de que o episódio Escola Base é filho direto do episódio Collor.
Obviamente, as críticas da coluna não eram contra a apuração da rede de propinas montada pelos diversos esquemas que cercavam Collor -que o colunista ajudou a denunciar. Mas contra o clima de linchamento que desarmou os critérios de avaliação jornalística, permitindo que qualquer exibicionista se habilitasse ao campeonato nacional de escândalos. Bastava, para tanto, usar a imaginação e atribuir a invencionice a uma fonte qualquer.
A imprensa dizia na época que Collor usava supositórios de cocaína, era amante de seu ordenança, vivia em estado catatônico e matava galinhas pretas em rituais de macumba, e Rosane Collor era homossexual e tinha caso com meia Brasília.

Freddy Krueger
O ombudsman considera que as informações eram verossímeis porque: a) presidentes não têm direito à privacidade e sua conduta sexual tem importância para os leitores menos esclarecidos; b) as principais baixarias foram divulgadas pelo próprio irmão de Collor; c) Collor era um exibicionista, com seus coopers e que tais; d) havia uma atmosfera de "dissolução moral" na Casa da Dinda, fruto do esquema de achaques montado.
É a síndrome de Freddy Krueger na análise jornalística. Não basta ser acusado de desonestidade e falta de escrúpulos. Todo desonesto é automaticamente tarado sexual, assassino em potencial e estuprador de crianças. E, se não for, merece ser!
Pois utilizar supositório de cocaína é informação verossímil porque partiu de um irmão que dedicava a Collor (e vice-versa) um ódio homicida. E porque Collor era um exibicionista, ainda que seu exibicionismo se manifestasse em práticas esportivas.
Mas havia uma atmosfera de "dissolução moral" na Casa da Dinda. Como assim? A Máfia é conhecida mundialmente por sua cultura de crimes e por rigorosos princípios familiares. Althusser tinha vida pessoal desregrada e uma rigorosa idoneidade intelectual. Onde a relação causal?

Campeonato
Valeria a pena o ombudsman investigar as relações entre o caso Collor e o episódio da Escola Base.
Na campanha contra Collor, a imprensa perdeu o referencial de escândalo. Montar esquemas de propinas virou carne de vaca. Tinha de haver mais. Tarados sexuais, macumbeiros, viciados alucinados. Não bastava nem sequer ser viciado convencional, com pó e seringa. Tinha de ser com supositório.
Quando o episódio foi esmaecendo, a imprensa continuou presa a um novo padrão de escândalos, como um viciado em morfina. Um padrão que jamais poderia ser atendido no dia-a-dia. Desarmaram-se todas as defesas e avaliações de objetividade da notícia jornalística e cessou o compromisso com os fatos.
Foi esse clima que levou à tragédia da Escola Base. E só após a autocrítica sobre o episódio, com tantas vítimas inocentes pelo caminho, é que a imprensa gradativamente voltou a um padrão menos exacerbado de escândalo.
Repito: é necessário exorcizar o episódio Collor e colocar os pingos nos is sobre a cobertura jornalística da época, para valorizar os furos jornalísticos efetivos e não mais repetir os exageros cometidos.

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