São Paulo, sábado, 9 de setembro de 1995
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A múmia da Quinta se vinga dos argentinos

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

No Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, antigo Paço de São Cristovão, funciona agora uma UTI de múmia egípcia. A que lá se encontra hospitalizada, com um higrômetro ao lado da cabeça para medir o grau de umidade de suas faixas e cueiros, data de cerca de mil anos e teria sido o invólucro terreno de um sacerdote chamado Hori, homem de casta, importante, a julgar pelo sarcófago em que jazia e no qual foi ensopado em água de recente chuvarada que varou o telhado do Museu. Visitei Hori, em seu caixão de Branca de Neve, no meio de um grupo do Conselho Estadual de Cultura do Estado do Rio.
Ao contrário do que Hori poderia esperar do sossego hierático em que contava mergulhar, a descoberta da América, com o consequente surgimento do seu bloco mais frenético, a América do Sul, tornou sua vida mais agitada do que quando rezava às margens do rio Nilo. Segundo o botânico Luiz Emygdio, que já ocupou o posto de diretor do Museu, Hori era um dos figurantes do bloco de antiguidades egípcias que o governo da Argentina, já independente da Espanha, comprou no Cairo, ao tempo em que governava o Brasil D. Pedro 1º. Acontece que, quando chegaram as antiguidades, havia revolução em Buenos Aires. O navio não pôde sequer atracar. O capitão do navio voltou ao mar alto, inclusive com a carga egípcia, que ainda não tinha sido paga. O resultado é que as antiguidades acabaram no Rio, vendidas a um comerciante da rua do Ouvidor. Quando o imperador teve notícia da pesca milagrosa que lhe batia à porta, mandou o Weffort da época à rua do Ouvidor. O tesouro faraônico foi adquirido e incorporado ao tesouro régio.
Olhei Hori, no esquife de vidro, entre seus aparelhos de pronto-socorro. Uma múmia de mil anos. Não há paz nem depois da morte e embalsamamento? Tinha razão Hamlet, no seu monólogo, ao imaginar que o sono da morte pode ser povoado de terrores que sequer imaginamos, enquanto vivemos? Pobre Hori. Bem que ele podia ter ido parar no Louvre, ou no Museu Egípcio de Berlim onde me encontrei um dia com o busto da rainha Nefertiti, ou Nofretete, como dizem os alemães, a Greta Garbo do Egito faraônico. A verdade é que os grandes museus da Europa são colônias do eterno plantadas na Terra passageira. Eles nos dão um gosto do que poderá ser, se é que existe, a bem-aventurança.
O Museu da Quinta da Boa Vista só sugere tristeza, a tristeza da incúria e da falta de verbas, que são os canos que trazem chuva, chuva que empapa mesmo aqueles homens que se imaginavam múmias, isto é, incorruptíveis.
Quanto aos argentinos, eles perderam a oportunidade de guardar Hori, que foi parar num antiquário da rua do Ouvidor, mas se transformaram, em compensação, tanto ou mais que os russos comunistas, nos grandes mumificadores modernos. A história de Evita Perón depois da morte vale a de um faraó, de uma "pharaonne". Evita é a espetacular (inventemos logo o vernáculo) faraoa dos tempos modernos. Neste momento faz sucesso não só em Buenos Aires como igualmente em Nova York sua biografia romanceada "Santa Evita "(ed. Planeta, 398 p.) de Tomás Eloy Martínez. Ocupa-se do sumiço que levou, durante 16 anos, o corpo dela, embalsamado em 1952 pelo médico espanhol Pedro Ara. Aliás, o trabalho, parece que admirável, de Ara, foi também por ele narrado minuciosamente num livro que comprei em Buenos Aires em 1974 e que se chama "El Caso Eva Perón". Ara conta as peripécias e as técnicas envolvidas na mumificação que começou, de fato, com Evita ainda viva, submetida por Ara a uma dieta especial. Parece um escritor de obra-prima que guardou o diário de composição - Thomas Mann, digamos, com seu "Doutor Fausto". Acontece, porém, como lembra agora Eloy Martínez, que a bela múmia da faraoa Evita foi posta em sossego, como tinha querido ela própria, na sede da CGT argentina. Mas quando os militares derrubaram Perón da Presidência da República em 1955, Evita-múmia iniciou sua carreira de descamisada sem pouso.
Em entrevista que concedeu à Folha em fim de julho passado, em Buenos Aires, Tomás Eloy Martínez traçou um roteiro vertiginoso da viagem mumificada de Evita por cemitérios, casas, monumentos, "aparelhos". E ocorrências pouco edificantes envolveram depois da morte aquela que em vida tanto pecou, antes de virar santa. Segundo Martínez, o major do Exército Arancíbia guardou a múmia em sua própria casa durante meses e acabou matando, por amor a Evita, sua própria mulher, que estava grávida. Semelhante coisa nunca ocorreu, nem na novela das oito. Um coronel, segundo ainda o autor de "Santa Evita", mandou que soldados violassem o corpo de Evita, o que só não ocorreu devido à rigidez do cadáver. Martínez acha que os argentinos têm uma fixação pela morte e que ela não é fenômeno "popular", mas nacional. Num livro anterior, "O romance de Perón", Martínez diz que quando Perón, no seu exílio espanhol, teve consigo a múmia de Evita, seu Rasputin, López Rega, fazia Isabelita, a nova mulher do caudilho, deitar-se ao lado de Evita, para uma transfusão de almas. Supõe-se que Evita esteja agora, finalmente, em repouso, no cemitério da Recoleta, em Buenos Aires. Não era sem tempo.
A garantia, porém, talvez não seja ainda absoluta. Guardei, como marcador do meu "El Caso Eva Perón", de Pedro Ara, um recorte de 1989, quando alguém entrou na Recoleta e roubou a caveira do patriarca Martínez de Hoz, para punir seu neto, ministro da Economia do governo militar de 1976 a 1983. Em 1987, roubaram do cemitério da Chacarita as mãos do próprio Perón, morto em 1974. E, finalmente, nesse mesmo ano Montoneros roubaram os restos mortais do general Aramburu, o mesmo que derrubou Perón e mandou inicialmente sequestrar os despojos de Evita.
Arre! Vade retro! Tesconjuro! Será que tudo isso foi trabalho da múmia de Hori, que, por não ter sido recebida em Buenos Aires com as devidas honras resolveu exercer seus direitos de vingança de múmia? Se for, falhou, pois acabou mata-borrão de chuva carioca.

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