São Paulo, quarta-feira, de dezembro de
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A risada trágica de um cubano

BERNARDO CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Reinaldo Arenas (1943-1990) foi um escritor injustiçado. Cubano, homossexual, autor de uma obra-prima aos 22 anos ("O Mundo Alucinante", 1966, publicado no Brasil, pela Francisco Alves, em 1984), passou de adolescente revolucionário contra o regime de Batista a figura indesejável sob Fidel e, consequentemente, aos olhos de uma comunidade internacional de artistas e intelectuais de esquerda simpatizantes do regime, para acabar se suicidando, doente de Aids e exilado nos EUA.
A imagem do homossexual declarado (incômoda para o regime cubano a ponto de fazer esquecer a do escritor) lhe valeu a perseguição, a prisão e o exílio (saiu de Cuba no chamado êxodo de Mariel, em 1980, quando milhares de pessoas ocuparam a embaixada do Peru em Havana, pedindo asilo político, criando uma crise social e sendo enviadas em seguida, em barcos, aos EUA -o episódio é narrado no deslumbrante livro de memórias "Antes que Anoiteça", publicado pela Record no ano passado).
"O Porteiro" (escrito em 1986 e lançado agora, no Brasil, também pela Record) é o romance da sua experiência americana. Mais que em qualquer outro romance do escritor, aqui sua experiência extraliterária (da perseguição ao exílio) se encontra traduzida num curioso equilíbrio entre o ressentimento e a comédia, num humor raivoso contra a sociedade e a hipocrisia americanas, que antes o escritor já tinha dirigido aos defensores do regime cubano.
No prefácio à edição de 1980 de "O Mundo Alucinante", Arenas atacava com ironia os que tentavam minimizar sua obra: "Informam-me que informes desinformados (e até mesmo patéticos) informam que há neste romance (...), de 1966, influência de obras que se escreveram e publicaram até mesmo depois dele, como 'Cem Anos de Solidão' (1967) (...). Eis aqui prova irrefutável, pelo menos para os críticos e resenhistas literários, de que o tempo, realmente, não existe". Em "Antes que Anoiteça", Arenas também não poupava ataques aos defensores de Fidel e, entre eles, a García Márquez, por seu apoio ao líder cubano, inclusive durante a crise do êxodo de Mariel, embora reconhecesse o talento do escritor.
A experiência americana, da qual "O Porteiro" é o resultado tragicômico, cataliza esse ressentimento na forma do exílio. Os EUA, inicialmente vistos como o paraíso, revelaram-se pouco a pouco um inferno responsável pela solidão do escritor, onde tudo é dinheiro e até para respirar é preciso pagar.
Na carta que deixou ao se matar, publicada em vários jornais e incluída ao final de "Antes que Anoiteça", Arenas culpava uma única pessoa por todos os seus sofrimentos, sua doença, o exílio, seu suicídio: Fidel Castro. Dizia que, se não tivesse sido obrigado a sair de Cuba, nada disso teria lhe acontecido. Era uma carta na qual o desespero aparecia transmutado numa raiva delirante, a principal força motora por trás desse extraordinário texto de memórias. Em "O Porteiro", o mesmo desespero e o ressentimento são transmutados num humor igualmente implacável, por meio da descrição dos dias de um cubano exilado, trabalhando como porteiro de um prédio de Nova York.
O livro é dedicado a um amigo do autor, o cubano Lázaro, que também saiu de Cuba durante o êxodo de Mariel, para acabar louco, internado num hospício de Nova York, após ter passado, entre outras, pela experiência de porteiro. Arenas se inspirou no que via ao visitar Lázaro na portaria de um prédio de classe média alta de Manhattan para criar boa parte dos personagens de "O Porteiro", uma galeria de seres excêntricos que, acompanhados de seus indefectíveis "pets" (cachorros, gatos, passarinhos, macacos e até cascavéis), servem como as principais peças de um painel alegórico e sarcástico da vida americana resumida no microcosmo de um único edifício.
Com esses personagens, Arenas se vinga da hipocrisia e do moralismo de um mundo ao qual não pertence e que a princípio acreditou poder ser sua salvação. "O Porteiro", narrando o percurso tragicômico de um exilado cubano nas mãos de uma fauna americana, é uma forma de reafirmação, pela via do humor (na falta de outra), de sua identidade latina num cenário ao mesmo tempo asséptico, grotesco, perverso e enganador de "brancos insossos", de autômatos insípidos perdidos numa máquina da eficiência e do dinheiro.
A visão que Arenas tem deles é delirante. Não só dos moradores (uma suicida frustrada, uma atriz decadente, um casal de homossexuais desesperados, o líder da Igreja do Amor a Cristo Mediante o Contato Amistoso e Incessante, entre muitos outros), mas de seus animais, aos quais se dedica mais atentamente na segunda parte do livro, uma hilariante paródia de fábula.
Juan, o ingênuo porteiro, "um jovem que morria de tristeza", deseja ajudar os moradores do prédio onde trabalha a alcançar a felicidade, deseja abrir-lhes "uma porta" que os liberte da hipocrisia, da insatisfação e da imaturidade em que vivem, mas acaba, como o Lázaro que inspirou o personagem, internado num hospital público de Nova York.
"O Porteiro" serve, além de tudo, de antídoto para uma percepção infantilizada do mundo (presente em grande parte da literatura americana recente). No lugar do convencional melodrama familiar pontuado pela Aids ou da tentativa de transformar o mundo num parque de diversões para adultos (no fundo, um dos desejos por trás de boa parte da política dos homossexuais nos EUA), Arenas lembra que o homem é trágico por definição e que, diante disso, o melhor ainda é rir. Rir não só dos outros, mas de si mesmo.

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