São Paulo, domingo, 10 de setembro de 1995
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Pela liberdade das mulheres

MARIA LÚCIA PALLARES BURKE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há mais de 160 anos as letras e o feminismo brasileiros se regozijam por um surpreendente feito literário: a tradução, em 1832, do tratado feminista de Mary Wollstonecraft, "A Vindication of the Rights of Woman", publicado em Londres, em 1792. Nesta obra, a feminista inglesa defendia a idéia de que os ideais revolucionários de 1789 só poderiam se efetivar se, ao lado dos direitos dos homens, os das mulheres fossem também amplamente assegurados.
A ousada tradutora era Nísia Floresta Brasileira Augusta, que, com seu livro "Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens", dava início à sua carreira literária e à pioneira batalha pelos direitos da mulher no Brasil. Publicada em Recife, a tradução livre de Nísia mostra que, apesar de eminentemente conservador e patriarcal, o país participava, em algum grau, do movimento de emancipação das mulheres que se desenvolvia na Europa.
É, no entanto, com um misto de constrangimento e entusiasmo que devo dizer que jamais houve a aclamada tradução, e que Nísia não desempenhou o papel de difusora das idéias emancipatórias de Wollstonecraft, cuja tradução até hoje ainda está por se fazer.
O que fez, então, Nísia? Uma breve história da pesquisa que gerou esta "descoberta pode ser esclarecedora. Originalmente, o estudo procurava fazer uma análise comparativa dos dois textos, o original inglês e o português, com o objetivo de recuperar o rico processo de recepção e difusão de idéias estrangeiras no Brasil. A análise sistemática dos dois textos mostrou, entretanto, aspectos um tanto intrigantes.
A despeito dos dois textos pertencerem, por assim dizer, à mesma "família feminista, não parecia haver entre eles a filiação que uma tradução deveria implicar. Talvez a singularidade do texto português, em detrimento do que era específico do inglês, pudesse ser entendida como estratégia consciente da tradutora. Face ao dilema entre uma fidelidade que não é totalmente inteligível e uma inteligibilidade que não é totalmente fiel, Nísia teria optado pela "infidelidade criativa, a que se somava uma argumentação mais ordenada e refinada do que a do confuso e repetitivo texto inglês.
Um aspecto particularmente significativo e desconcertante no texto de Nísia parecia, entretanto, impedir uma avaliação nesses termos: a absoluta ausência de qualquer menção a Jean-Jacques Rousseau, figura central à argumentação de Mary Wollstonecraft e da maioria das feministas que sempre o viram como o vilão da história da mulher e o grande responsável pela ideologia da domesticidade feminina que se propagou desde o "Século das Luzes".
Parecia difícil entender como uma acomodação ao cenário local a omissão de Rousseau e a inclusão do romano Catão, ainda mais considerando que o filósofo genebrino era figura conhecida dos brasileiros, desde o século anterior, como um dos "pais dos famosos e "abomináveis princípios franceses. Havia, pois, na singularidade do texto brasileiro algo de intrigante e suspeito que não me parecia tranquilamente explicável pela pura e simples afirmação do grande talento de nossa tradutora.
Foi então, a essa altura, que a vaga sensação do "déjà vu, que surgira no decorrer da análise do texto de Nísia, se impôs como uma forte hipótese. Um acaso deu início ao deslindamento do enigma. Tempos atrás, tomara contato com a obra do pensador francês do século 17, hoje praticamente esquecido, François Poulain de La Barre, que me surpreendera por sua audácia. Em seu livro de 1673, "De l'Égalité des Deux Sexes", de clara inspiração cartesiana, ele submetera a crença na desigualdade entre os sexos ao escrutínio da razão e provara que tanto essa desigualdade como a exclusão das mulheres da vida pública infringiam os ditames da razão e da natureza.
No decorrer da repetida leitura do texto de Nísia, ocorreu-me que a origem do "déjà vu poderia ser o texto de Poulain. O estilo da argumentação e o tom enfático das críticas ao patriarcalismo pareciam-me vagamente conhecidos. Bastou um mero folhear de páginas para constatar que minha suspeita era fundada. Ali estavam, ipsis litteris, muitos dos trechos mais incisivos da obra "Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens", traduzidos, diga-se de passagem, com grande talento e maestria por Nísia.
Grande parte do enigma, pois, aí se solucionava. Obviamente, Rousseau não podia estar presente num texto que o antecedia por quase um século. Havia, entretanto, a possibilidade de se salvar muito da "infidelidade criativa de Nísia. Seu texto era mais sintético e apaixonado do que o do pensador francês. Havia também novas referências, que podiam ser provas da erudição e criatividade de Nísia. Esta possibilidade, no entanto, foi eliminada por uma nova descoberta, que pôs um fim definitivo à busca das origens do texto da jovem brasileira.
Num texto ainda mais esquecido do que o de Poulain, temos a chave para o enigma sobre o que fez Nísia. Ela traduziu literalmente e na sua totalidade um livreto de 1739, intitulado "Woman Not Inferior to Man", cujo autor ou autora desconhecida se escondia, e ainda se esconde, sob o pseudônimo de Sophia, a "Person of Quality". A pretensa tradução livre de Wollstonecraft foi, na verdade, o que poderíamos chamar de um plágio-tradução de outro plágio, já que o texto de Sophia era plagiado em grande parte do de Poulain. E aqui atingimos a parte mais espinhosa da investigação. Como interpretar tal artimanha?
Alguns aspectos da vida de Nísia podem trazer alguma luz. Em 1832, ao publicar sua tradução, com apenas 22 anos, ela já havia passado por duras experiências: vira seu pai, um advogado português, ser perseguido pelos antilusitanos; casara-se aos 13 anos e logo abandonara o marido; mudara-se de Rio Grande do Norte para Olinda, onde o pai foi assassinado; passara a viver com um jovem acadêmico; adquirira fama de adúltera; tivera dois filhos e perdera o primogênito.
Ora, após tantos reveses, dificilmente poder-se-ia dizer que Nísia estivesse buscando, com sua tradução, qualquer glória literária. Seu "plágio-tradução se explica em função de uma causa para cuja defesa muitos meios se justificavam. Incapaz de, por si só, desenvolver uma oposição articulada a um sistema opressor, Nísia teria encontrado no livreto de Sophia a argumentação crítica e construtiva que buscava.
Independente, sem um pai ou marido a dar-lhe a tradicional proteção, Nísia não teria sido atraída por um pensamento que ainda considerava que os papéis centrais da mulher em sociedade eram os de esposa e mãe. Para Wollstonecraft, é como esposa e mãe ilustrada que a mulher pode desempenhar seu dever de "cidadã ativa. Nesse aspecto, o pensamento de Sophia era bem mais revolucionário. Para ela, os valores do casamento e da maternidade não eram centrais como em Wollstonecraft.
O maior empenho de Sophia era no sentido de conscientizar a mulher da sua capacidade -igual ou até superior à do homem- e do seu direito de desempenhar papéis tradicionalmente masculinos. Se, pois, no entender de Nísia, Wollstonecraft não era suficientemente revolucionária, era provavelmente famosa e polêmica o suficiente para garantir um público interessado em ouvi-la. A mensagem importante era, entretanto, a de Sophia.
A travessura literária de Nísia Floresta foi, pois, responsável por uma daquelas felizes ironias da história. Num país distante e selvagem, aos olhos do europeu civilizado, e povoado por sinhazinhas pretensamente dengosas e indolentes, se podia ler o tratado subversivo que há quase um século fora apagado da memória européia. Além da "Moreninha", de Macedo, outras jovens provavelmente liam a Mary Wollstonecraft brasileira, isto é, a subversiva dupla Poulain-Sophia.
Se, portanto, o regozijo pela tradução de Mary Wollstonecraft não mais se justifica, as letras e o feminismo brasileiros têm motivos ainda maiores para se orgulhar da façanha de Nísia Floresta e do texto com que ela pretendeu dar aqui início à batalha pelos direitos da mulher.

MARIA LÚCIA GARCIA PALLARES BURKE é professora da Faculdade de Educação da USP; é autora de "The Spectator, o Teatro das Luzes - Diálogo e Imprensa no Século 18", a ser lançado neste mês pela Editora Hicitec; este texto é uma versão resumida de um trabalho apresentado, em maio de 1995, no seminário internacional "Gêneros de Fronteira: Cruzamentos entre o Histórico e o Literário, organizado pelo Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP

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