São Paulo, domingo, 10 de setembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Questão de decência

FÁBIO KONDER COMPARATO

Felizmente, o exímio advogado José Carlos Dias volta a trazer ao debate público uma questão que o governo Fernando Henrique procura encobrir de todas as formas: os agentes estatais que torturaram e mataram opositores políticos durante o regime militar foram realmente anistiados? Observo, inicialmente, que a discussão não deveria cingir-se ao lado exclusivamente jurídico do problema, mas abranger também os seus aspectos políticos e morais.
É politicamente indefensável, com efeito, pretender que os que governavam acima das leis, sob a vigência do chamado Ato Institucional nº 5, possam legitimamente obter de um legislador submisso a anistia para os crimes que cometeram no exercício de suas funções. Que democracia é essa que se inaugura no achincalhe?
A pretensa "pacificação dos espíritos", de resto, foi sempre uma farsa grosseira, pois à época da anistia não havia o menor vislumbre de oposição armada ao regime. Tudo se passou como se um ditador corrupto qualquer, desejando abandonar o poder sem riscos, negociasse com o sucessor uma pré-anistia para os seus desmandos.
No terreno moral então, Santo Deus!, é decente aceitar-se que a tortura e o assassínio organizado de opositores políticos representem o meio necessário para a manutenção de um regime político e de um sistema econômico que condenam milhões de brasileiros à fome, à morbidez e à marginalização social?
Vamos, porém, aos argumentos de ordem jurídica.
José Carlos Dias observa que os atos e convenções internacionais relativos ao desaparecimento forçado de pessoas são, todos, de data posterior aos crimes praticados por agentes estatais no Brasil durante o regime militar. Logo, não podem aplicar-se retroativamente.
Efetivamente, dentre os meus parcos conhecimentos de direito penal figura o reconhecimento de que nunca haverá crime nem pena sem prévia definição legal. Lembro, no entanto, que desde sempre o homicídio, as lesões corporais e a ocultação de cadáver têm sido definidos em nossa lei como crimes.
Não precisamos, portanto, aguardar a introdução em nosso ordenamento daqueles atos e convenções internacionais para perseguir judicialmente os autores de tais crimes.
Da mesma sorte, o fato de havermos ratificado e promulgado, pelo decreto nº 40 de 15 de fevereiro de 1991, a convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, não significou que, antes dessa data, os atos de tortura de presos fossem penalmente indiferentes.
Importa ademais notar, como tem reconhecido a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao julgar ilegítimas as leis de anistia editadas pelos próprios governantes anistiados, que os atos e convenções internacionais sobre tortura e desaparecimento forçado de pessoas nada mais são do que simples desdobramentos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), e da mais longeva tradição de reconhecimento da dignidade da pessoa humana, base de todos os ordenamentos jurídicos.
Por outro lado, enfrentando o problema -até hoje não suscitado- de que a lei de anistia de 1979, por evidente falha redacional, não abrangeu os crimes praticados pelos agentes estatais contra opositores políticos do regime, José Carlos Dias aponta para o fato de que, desde a gestação da lei, a intenção evidente do legislador (e disso ninguém tem a menor dúvida) foi a de anistiar os militares e policiais envolvidos em atos de repressão violenta.
É aqui a minha vez de lembrar ao ilustre causídico o velho princípio de que a intenção do legislador é o mais fraco argumento interpretativo, não podendo jamais prevalecer contra o ditado objetivo da lei. Peço também licença ao grande advogado criminal para insistir no fato de que a conexão material de delitos supõe um concurso material de infrações ou co-autoria, o que a todas as luzes não ocorreu entre os crimes dos subversivos e os praticados pelos agentes da repressão.
Seja como for, não haverá retórica e dialética capaz de demonstrar o indemonstrável, ou seja, que o direito à verdade nada tem a ver com a anistia penal. Pretender, como pretende o governo, que as circunstâncias dos crimes e os nomes dos responsáveis não podem ser apurados, porque encobertos pela (falsa) anistia de 1979, é o mesmo que dizer que ninguém tem o direito de investigar sua paternidade, se esta resultou de um crime anistiado. Nem se vê, com base nesse raciocínio, por que o governo removeu de Londres o coronel Armando Avólio Filho, reconhecido como torturador durante o regime militar.
Reconheço, no entanto, plena razão ao dr. José Carlos Dias quando diz que "se o agente não pode mais ser penalmente responsabilizado, pode sê-lo no plano civil, solidariamente com o Estado do qual é o preposto".
Por isso mesmo, se o Estado brasileiro vier a reconhecer sua responsabilidade civil pelos crimes praticados pelos agentes da repressão no regime militar, fica o governo federal obrigado a promover, contra os que, direta ou indiretamente, praticaram tais atos, inclusive os signatários do Ato Institucional nº 5, a ação regressiva para reembolso do Tesouro Nacional. Se não o fizer, qualquer do povo pode e deve ingressar em juízo com ação popular contra o presidente da República.
Esperemos, pois, que o Executivo e o Congresso decidam agora discutir diretamente com o povo uma questão que é de decência nacional.

Texto Anterior: Política da malvadeza
Próximo Texto: Crianças; Pedágio; Jogos à noite; Discriminação; Valor pessoal; Desaparecidos; Plano de saúde; Teste nuclear; Casuísmo; Japão
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.