São Paulo, domingo, 10 de setembro de 1995 |
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Comunidade (nada) Solidária
JOSIAS DE SOUZA BRASÍLIA - Há entre Brasília e a paupérrima Capitão Enéas, cidade mineira plantada no Vale do Jequitinhonha, algo que impede a chegada da comida do Comunidade Solidária ao estômago de brasileiros famintos.O que separa as bocas de Capitão Enéas da magra ração oferecida por Brasília (fubá, arroz e macarrão) é a dessemelhança entre os planos de Ruth Cardoso, gestora do Comunidade Solidária, e as intenções de Jorge Enéas Mineiro de Souza, prefeito do município. Mineiro de Souza não gostou da exigência de submeter a distribuição dos alimentos ao crivo de uma comissão multirrepresentativa. Abespinhado, mandou uma carta a Brasília, na qual abre mão dos alimentos. Sob a alegação de que as cestas de Ruth estavam lhe causando "problemas políticos", o prefeito dispensou uma comida que, para seus munícipes, pode significar a diferença entre permanecer vivo ou fenecer mais cedo de fome. A correspondência de Mineiro de Souza é prova material da resistência de um Brasil que sobrevive à margem do escrúpulo. Está guardada nos arquivos da Conab, empresa pública incumbida de distribuir as cestas de mantimentos do governo. O panorama em Capitão Enéas lembra as áreas mais pobres do Nordeste. A seca produz um cenário de desespero. Há no município 12 mil habitantes, 60% dos quais miseráveis. Velhos e jovens, mulheres e homens esfarrapados. Crianças em pele e osso. O que teria levado o prefeito Mineiro de Souza a ignorar a tragédia à sua volta? Ouvi sua explicação pelo telefone: "Nosso pessoal aqui é carente e precisa. Mas foi tanta exigência que eu falei: larga esse negócio de mão. É como se todo prefeito aqui fosse ladrão". O Exército distribuirá o alimento destinado ao Capitão Enéas. "Não quero nem estar aqui no dia", exime-se Mineiro de Souza. "Precisamos de 5.000 cestas e eles só vão mandar 1.000." Não se sabe quantos flagelados o fubá, o macarrão e o arroz de Ruth salvarão em Capitão Enéas. Sabe-se apenas que os eventuais sobreviventes permanecerão como cidadãos-zumbis. Na próxima eleição, entregarão o voto a outro Mineiro de Souza. Texto Anterior: Global, mas não aldeia Próximo Texto: Nós que nos amávamos tanto Índice |
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