São Paulo, terça-feira, 12 de setembro de 1995
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Quase gente

LUIZ CAVERSAN

RIO DE JANEIRO-Dez pessoas são fuziladas num morro durante um baile. Uma delas tem 11 anos de idade. Outras três estão hospitalizadas, a em estado mais grave é uma menina de 15 anos, grávida.
E daí? É tudo traficante, tudo preto, tudo pobre.
Só a menina de 11 anos não era ligada ao tráfico, garantiu o general secretário da Segurança do Rio. Será? E se ela fosse um "avião"? Os tiras assistentes do general podem explicar para ele que "avião" é a criança que leva e traz a droga no morro. Ora general, pode dizer que era tudo traficante, mesmo que tudo bem, a maioria não liga.
Afinal, como poetou Caetano Veloso em sua infelizmente clássica "Haiti", ali todos são "quase pretos de tão pobres/e pobres são como podres/e todos sabem como se tratam os pretos"(...).
E já que eram todos quase pretos e "todos ligados ao tráfico", pouco importa quantos tiros levaram, se tinham ficha policial, se trabalhavam, estudavam, se comiam, vestiam, se moravam, se sorriam, procriavam, se viviam.
Vida besta, aliás, de subgente, quase gente que não pode morrer fuzilada porque vira automaticamente traficante. Nada mais existirá na medíocre história de suas vidas senão o fato de se converterem em traficantes de drogas.
Não pode morrer assim, de repente. Tem que viver a miséria do morro, da ausência de tudo, quietinha lá no seu canto enlameado pelos excrementos da não-cidade. Ora vejam só: morrer com um estardalhaço desses, logo dez de uma vez, durante uma porcaria de um baile barulhento. Não conhecem seu lugar, não? Façam o favor...
Esse tipo de equilíbrio demográfico deveria acontecer na boa, sem alarde, discretamente. Assim como apareceu no noticiário da TV: entre a previsão do tempo e a dica para o passeio na zona sul. Só devia ter só zona sul, onde tudo é bacana. Longe da quase gente que insiste em invadir, com sua mania de ser fuzilada, o feriadão desse povo ordeiro e trabalhador.

E viva o sorriso da Regina Casé.

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