São Paulo, quarta-feira, 13 de setembro de 1995
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Stendhal delicia com biografias prematuras

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

Erramos: 23/11/95
O escritor Stendhal morreu em 1842, e não em 1841, como afirmou erroneamente texto publicado à pág. 5-7 ( Ilustrada) de 13/9.
"É tão difícil escrever a história de um homem vivo!", exclamava Stendhal, criptônimo do escritor francês Henry Beyle (1783-1841).
Antes de criar os romances "O Vermelho e o Negro" (1829) e "A Cartuxa de Parma" (1839), que lhe garantiram a glória post-mortem, Stendhal se devotou ao áspero ofício de criar biografias de personagens vivas. Duas delas chegam ao mercado brasileiro.
"Napoleão" descreve parte da vida do imperador francês (1769-1821) numa edição da Boitempo. "Vida de Rossini", que sai segunda que vem pela Cia. das Letras, tem prefácio do musicólogo Lorenzo Mammi. Aborda a trajetória meteórica do compositor italiano Gioacchino Rossini (1792-1868).
Se, como diz o autor, foi difícil escrevê-lo, o par de biografias prematuras encerra leituras deliciosas. São textos inconclusos, ordenados "ad libitum" pela enunciação fluente e anárquica de Stendhal.
O autor revela um ímpeto juvenil em narrar e mexericar sobre a personalidade e a época dos biografados -a da Restauração- que, claro, também é a sua.
O biógrafo se engaja tão intimamente na vida dos seus heróis que os livros constituem capítulos de uma mesma autobiografia -a de Beyle, escritor de certa forma napoleônico e rossiniano.
As três vidas se entrelaçam. Beyle chega de Grenoble a Paris em 10 de novembro de 1799, no dia seguinte ao golpe de estado do 18 Brumário, dado por Napoleão. Entre 1800 e 1801, serve no exército de Napoleão na Itália e tem longas conversas com o general. Em Bolonha, Rossini começa nessa época a apresentar em público suas primeiras obras. Napoleão derrota a Prússia e em 1808 invade a Península Ibérica.
Com a queda e exílio de Napoleão, em 1815, Beyle corre o mundo e encontra na Itália os sucessos de Rossini. Publica seu primeiro livro, "Cartas sobre Haydn". Rossini estréia "O Barbeiro de Sevilha" em 1816.
Dois anos depois o escritor esboça "Vida de Napoleão", no momento em que Rossini faz sucesso com a ópera "Moisés no Egito" em Nápoles.
Napoleão morre no meio da feitura da obra de Stendhal, em 5 de maio de 1821, quase simultaneamente à estréia de "Mathilde de Shahran", de Rossini, em Roma.
Em 1823, Stendhal publica "Vida de Rossini", resultado de sua atividade como crítico musical em Paris. É o ano em que o músico põe no palco sua última ópera italiana, "Semíramis".
Quando Stendhal publica "A Cartuxa de Parma", o italiano exibe em Paris sua derradeira ópera "Guilherme Tell". A partir daí, desiste da ópera. Pouco depois, o escritor abandona a idéia de concluir a biografia de Napoleão.
Rossini faz executar o "Stabat Mater" em Paris em 7 de janeiro de 1842. Em 22 de março, na mesma cidade, Stendhal morre de um ataque de apoplexia. Rossini ultrapassa a vida de seu biógrafo em 27 anos. Usufrui do menos criativo dos ócios, talvez devido à ausência de um texto que o abarque. Seu biógrafo está morto.
A dificuldade é historicamente inevitável; descolar-se dos objetos e dele próprio. "Como um homem faria para não ser de seu século?", pergunta, sobre Rossini.
Beyle pertenceu ao século 19. Viveu o contexto internacionalista da Europa de Napoleão e, apesar do pendor jacobino, cultivou uma veneração irracional pelo déspota.
Começa a biografia de Napoleão assim: "Experimento uma espécie de sentimento religioso ao escrever a primeira frase da história de Napoleão". O sentimento se prolonga na de Rossini já na primeira frase do volume: "Depois da morte de Napoleão, surgiu um outro homem do qual se fala todos os dias em Moscou e em Nápoles, em Londres e em Viena, em Paris e em Calcutá."
A exemplo desse homem que tinha só 32 anos à época da publicação de sua biografia, Stendhal atraiu os leitores da nova sociedade multinacional com suas narrativas ágeis.
Chama Rossini de "artista da vida moderna" que alimenta o desejo dos indivíduos de persistirem num presente constante. Era inaugurada por Napoleão.
Stendhal demarca em "Rossini" o início do individualismo romântico na Paris encantada pelas óperas do compositor: "O público de 1780 era uma reunião de ociosos; hoje, não apenas não existem 20 ociosos no meio de toda a sociedade de Paris, mas também, graças aos partidos que se fortalecem há quatro anos, estamos talvez às vésperas de nos tornar apaixonados: essa mudança extrema decide toda a questão."
O escritor mostra em "Napoleão" que antecipou a paixonite romântica. Em vez de biografar o imperador, recorda-se de seus tempos de soldado amante em Milão. Quanto mais se esquiva dos fatos lineares, mais se torna interessante. Em "Rossini" dá-se o mesmo processo. O livro é uma colcha de retalhos sobre o imaginário do mundo sacudido por mutações comportamentais.
Stendhal produz pensamento bruto no vácuo dos fatos. Anota datas curiosas, como 1812, ano em que Mozart e Rossini começaram a ser consumidos na Itália. Ou 1680, nascimento do bel canto, com o castrato Pistocchi.
Nostálgico do domínio dos castrati, ele acusa Rossini de ter dado um golpe na ópera para lhe retirar o poder da voz. Nota que o músico se incumbe dos floreios em vez do cantor, atalha a tensão dramática para levar a trama velozmente ao ápice. "Neste século expedito, Rossini tem uma vantagem: dispensa a atenção", desfere.
Em suas "notas de diletante", Stendhal age como o músico e o imperador. Rápido na pena, conquista o leitor antes que este possa reagir.

Livro: Napoleão
Lançamento: Boitempo, 194 págs.
Tradução: Eduardo Brandão e Kátia Rossini
Quanto: R$ 24
Livro: Vida de Rossini
Lançamento: Cia. das Letras, 482 págs.
Tradução: Maria Lúcia Machado
Quanto: R$ 29

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