São Paulo, quarta-feira, 13 de setembro de 1995
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Salário não é renda

Estava na hora de entendermos que o lucro do capital, em qualquer de suas formas, é renda
SAULO RAMOS
Everardo Maciel, diretor da Receita Federal, por não ter parentesco com os deuses do Olimpo, tem os pés na terra e, na medida em que consegue não ser atrapalhado pela voracidade fiscal do ambiente, poderá conseguir soluções capazes de atender às crônicas necessidades antagônicas entre a baixa arrecadação do Tesouro Nacional e a demasiada carga sobre os contribuintes, que efetivamente pagam impostos.
Claro está que não se fazem mais milagres como antigamente. Maciel, no entanto, é meio fazendário e meio gente, isto é, tem espírito público, defende o erário, sem cometer heresias contra o espírito de justiça para com quem trabalha e sustenta este país, o povão.
A proposta de reforma do imposto sobre a renda, anunciada pelo governo federal, ostenta várias impressões digitais de Everardo, embora espremidas entre marcas das patas de alguns paquidermes.
Segundo o texto definitivo do projeto que altera o imposto de renda, publicado semana passada pela Folha, a filosofia geral da proposta legislativa parece boa porque, afinal, o imposto passa a se transformar realmente em tributo sobre a renda. Estava na hora de entendermos que o lucro do capital, em qualquer de suas formas, é renda.
Pelo sistema atual, o investimento estrangeiro em operações nas Bolsas brasileiras está isento, qualquer que seja o lucro. A renda líquida de empresas brasileiras nas filiais estrangeiras não é tributada. Mercado de capitais, ações, debêntures, é tudo intocável pelo fisco ou, em alguns casos, tocado com a máxima ternura.
O projeto altera a situação. Para a primeira hipótese (estrangeiros nas bolsas), estabelece uma faixa de isenção e, daí para cima, institui uma alíquota de imposto não muito exagerada para não espantar os fregueses, que estão afeitos a pagar tal imposto em seus países.
Na segunda hipótese, faz incidir imposto sobre o lucro das empresas brasileiras no exterior, sob cuidados para elidir os rigores da bitributação (não entendi a redação do artigo 25, duro de molejo). No geral, porém, o projeto endereça o imposto para as atividades empresariais, isto é, para o mundo dos negócios e das produções, que verdadeiramente geram renda.
A estatística, demonstrando que as empresas brasileiras pagam, em média, menos de R$ 1.000 por ano desse imposto, é um insulto, tão vergonhoso como pancadaria de torcida de futebol.
Cria o projeto alguns mecanismos para remunerar, como investimento financeiro, as aplicações de sócios nas respectivas pessoas jurídicas, numa tentativa de acordar o empresariado para a capitalização de suas companhias, em vez de deixar seus ativos financeiros nos paraísos fiscais do Caribe.
Mas traz uma novidade boba e inviável: impede a dedução, como despesas, dos juros pagos por empréstimos tomados às instituições financeiras, logo dos maiores juros do mundo, posto que, nesse particular, o Brasil está ganhando de goleada. É a pata do paquiderme.
Elimina a correção monetária dos balanços das empresas. Tudo bem, mas, para que funcione essa ferramenta arrecadadora, é preciso que a moeda continue estável. Creio que o Congresso Nacional deverá criar uma espécie de "gatilho" para prevenir desastres, já que a legislação do Plano Real admite, em tese, reajustes anuais de preços. E, cá entre nós, moeda estável que paga 5% de juros ao mês, para cobrar 8% ou 10% dos tomadores, pode conter um enorme estelionato nessa tão badalada estabilidade. A agricultura que o diga.
Mas aqui estamos falando de imposto sobre a renda. Política monetária é outra realidade. A reforma idealizada por Everardo Maciel trata do imposto e tem, como se vê nessa primeira panorâmica, aspectos positivos na medida em que dirige a legislação para a verdadeira renda, o lucro de capitais e respectivos investimentos.
É uma esperança, pois quando o Tesouro passar a abastecer-se de receitas oriundas do imposto sobre os lucros de capital e atividade empresarial, pode ser (bendita seja a ingenuidade dos puros!) que um dia entenda de eliminar, ou abrandar ao máximo, o imposto que onera os assalariados. A vida inteira entendi que salário não é renda. Vou morrer teimando.

JOSÉ SAULO PEREIRA RAMOS, 62, é advogado em São Paulo. Foi consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney).

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