São Paulo, sábado, 16 de setembro de 1995
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'Xangô de Baker Street' é a belle époque tropical

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Tremi. E se o livro de Jô Soares, "O Xangô de Baker Street", fosse um sarapatel de contrastes, uma típica mistura tipo "samba do gordo doido"?
A história podia levar a este ensopadinho. Vejam: no ano de 1886, é roubado o violino Stradivarius com que D. Pedro 2º presenteara sua namorada secreta, a baronesa de Avaré. O imperador resolve chamar o famoso detetive Sherlock Holmes de Londres para descobrir o culpado.
Nos mesmos dias, crimes terríveis começam a acontecer no Rio: um assassino maníaco, um avô dos "serial killers", degola e disseca prostitutas, deixando junto a seus corpos cordas de violino. Sherlock Holmes vem com dr. Watson e começa a investigar. Chega ao Rio também a atriz Sarah Bernhardt com "Fedra", "Dama das Camélias", "Frou Frou" arrancando enlevo e paixão nos círculos cultos da época.
Sherlock investigando e Sarah representando são os dois ícones de referência para um afresco amplo sobre a belle époque tropical. Atriz e detetive são contaminados pela cidade bárbara e afrancesada, escravista e literária, refinada e com febre amarela. Ou seja, nada melhor para se estudar "as idéias fora do lugar" da época e nada mais perigoso para a montagem de uma caricatura de contrastes fáceis e cômicos. Até rola isso, às vezes, pois o Jô não é de ferro. Mas, o resultado é muito maior.
Primeiro, porque Jô pesquisou muito e assim criou um respeito pela vida real das personagens que impedem qualquer simplismo. Segundo, porque o livro tem duas máquinas separadas: a trama policial, ou melhor, a paródia de uma trama policial, e a cidade como pano de fundo. O raconto cheio de suspense e humor serve para abrir a cortina sobre o Rio daquele tempo. A brutalidade de certas cenas de facas e necrotérios (não sem humor negro) nos leva para a frente sem poder largar o livro. E esta caça ao criminoso nos leva a um maravilhoso passeio no passado. Nostalgia e necrotérios.
O livro de Jô parece um "blend" entre Rubem Fonseca e Luis Edmundo. A fragilidade de uma civilização montada com supérfluos para as classes altas fica visível através dos "inserts" de barbárie que vemos nos botecos e prostíbulos. Mas, também a grande magia do Rio antigo vem à tona com irresistível sabor. Entramos nas confeitarias literárias, nas rodas de Paula Nei e Olavo Bilac, nos teatros de revistas, nos restaurantes, nos hotéis de luxo, a livraria Garnier, o Hotel Albion, o Grande Hotel, o Passeio Público, os lundus, os maxixes, o paço imperial, o Jockey Club, em suma, toda uma geografia humana e urbana emerge de sob os alicerces trágicos da cidade de hoje, deixando ver seu rosto antigo de cidade-mulher, antes de ser destroçada pelos punhais cruéis dos assassinos atuais.
Há uma metáfora de uma cidade esquartejada, no confronto entre leveza boemia e os crimes brutais. E se Jô é radicalmente forte nas cenas de crime, ele é deliciosamente agradável na reconstituição dos locais e pessoas. Jô Soares não tem medo de ser agradável diante da chantagem melancólica que o texto atual demanda. Agradável e humorístico. Não que o livro fique procurando pretextos para piadinhas. É um humorístico que vem "antes" da escrita, e que penetra como a brisa da rua Fresca ali perto da Santa Luzia, perto da praia das Virtudes, quem se lembra ainda? É um humor, melhor dizendo, um "bom humor" cheio de amor, que aliás é o recado básico de Jô a nós, nesta vida.
É um amorável e agradável bom humor que envolve tudo. E este prazer do texto simples traz ao livro a profundidade de uma despretensão. E esta leveza densa se dá também no texto, que flui como uma conversa inteligente. Jô mesmo na vida real tem algo de Paulo Barreto, algo de cronista de costumes. A mesma leveza com que ele radiografa a inteligência (e a burrice) de hoje em seu programa está lá, como se Jô estivesse de "plastron" e bigodes tomando cerveja com Arthur de Azevedo no hotel da Marquês de Abrantes.
João do Rio leva a "Jô" do Rio. Aliás, há no livro um procedimento típico da literatura pré-moderna que é o espreitamento do terrível em meio à ingenuidade do tempo, como no conto "O Bebê de Tarlatana" de João do Rio, onde o terror se mistura ao Carnaval: o rosto da foliona leprosa como prenúncio da alegoria moderna.
Só que João escrevia de lá; o Jô escreve de cá. O medo do futuro dá lugar às saudades do passado. É um livro pré-moderno, sobre aquela época precisa entre a Europa e a América, quando o "dândi" ia ser substituído pelo "sportsman". Normalmente, lemos livros de hoje e de ontem. O "Xangô" é um livro de hoje que se passa em ontem, um antiflashback, uma viagem ao passado por alguém que conhece o presente. É uma viagem com Jô pelo Rio antigo, ele que certamente gostaria muito de ser amigo de Emilio de Meneses ou de entrevistar Olavo Bilac para seu programa. Mais que um livro sobre o passado, é uma viagem no tempo. Com amor e humor, há no livro um desejo de entender o que já fomos, agora que estamos num novo fim-de-século, numa "époque pas belle". Há uma nostalgia também por nós, uma nostalgia do presente. Quem dera que estivéssemos aqui hoje só de passagem e que pudéssemos voltar no tempo e dizer a Paula Nei na Confeitaria Pascoal tomando um chá com Coelho Netto: "Daqui a pouco a gente volta...".

Livro: O Xangô de Baker Street
Autor: Jô Soares
Páginas: 352
Preço: R$ 24

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