São Paulo, domingo, 17 de setembro de 1995
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o mal-estar da incivilidade

MARILENE FELINTO

Eu ia começar dizendo que o Rio de Janeiro me dá pena, a cidade maravilhosa. Maravilhosa, definitivamente: há cinco anos sem pisar no Rio, desci do avião preocupada, com medo. Mas quando o táxi entrou no aterro do Flamengo, o choque: que cidade linda, verde, aberta, à beira do mar aberto. Que geografia! Do 19.o andar do hotel, em Copacabana, o mar adiante dos olhos, a paisagem indiscutível: o Rio de Janeiro sobreviverá sempre às suas catástrofes, dispensa piedade.
Mas o Rio me dava pena por causa daquela presidiária Lindalva dos Prazeres, que confirmou a denúncia, passados dois anos, contra a polícia carioca no caso do sequestro e morte do funcionário público Jorge Antonio Carelli. Lindalva é bonita: o rosto largo, marcado, os olhos rasgados de índia, a voz rouca de Elza Soares.
Eu ia pedir liberdade para Lindalva. Seja lá o que ela tenha feito, não chega aos pés do que a polícia fez com o funcionário público e com ela própria: Lindalva riu de nervoso, meio doida, quando contou dos choques elétricos que tomou na prisão. Já pagou o que tinha de pagar, se é que cometeu algum crime.
Prostituta? Quem? Lindalva? Lindalva é uma santa. A polícia carioca é que é podre, de feder. Para não falar da Justiça, que absolveu os culpados do caso Carelli. Mas não se pode falar desses intocáveis juízes brasileiros. Nem vale a pena a crítica, o esforço de compreensão. A inferioridade intelectual da autoridade brasileira é ameaçadora.
Quando eu ia dizer que o Rio me dava pena, soube que a polícia de São Paulo aconselhou um amigo a chamar o "Aqui Agora", do SBT, para resolver o problema de um bar barulhento, que vinha infernizando a vizinhança. A polícia esteve três vezes no local, sem conseguir nada.
Então, meu amigo acionou o programa "Psiu", da prefeitura, que fiscalizaria a lei do silêncio. O rapaz mandou três faxes, mas nada aconteceu. Era mais uma das farsas da prefeitura malufista, que se autopromove anunciando pseudoprojetos de defesa da cidadania.
Outro conhecido, advogado, filho de desembargador, passou a manhã inteira na Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), para pedir que religassem a água da casa do pai dele, que a Sabesp insistia em dizer que tinha conta devedora. O rapaz apresentou o comprovante, civilizadamente, sem apelar para o antes eficaz "você sabe com quem está falando?". Religaram a água. No mês seguinte, tudo de novo: o mesmo aviso de conta devedora.
Agora parece que o desrespeito e a incompetência se estabeleceram nesse novo negócio de Primeiro Mundo: as tevês a cabo ou por assinatura. Um desastre: dos carnês de pagamento que nunca são entregues à instalação do sistema, que não cumpre datas, atrasa meses.
Problema de rico, é claro. Mas rico brasileiro também tem problema, sejamos justos. No país da indústria do cacareco, a indústria "made in Brasil", tudo é um estorvo.
Dá pena -para não dizer que dá nojo- esse Brasil que ainda desconhece o mero conceito de civilização. Freud diz: a palavra "civilização" descreve a soma integral das realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos antepassados animais, e que servem a dois intuitos, a saber: o de proteger os homens contra a natureza e o de ajustar os seus relacionamentos mútuos. Simples assim.

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