São Paulo, segunda-feira, 18 de setembro de 1995
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Violência e desemprego

JOÃO SAYAD

A inflação está baixa e caindo e, pelo menos em agosto, as exportações serão maiores do que as importações. Muito bem, está na hora de arranjar outro assunto, de procurar outros problemas para discutir. Qual o próximo item das preocupações nacionais -violência ou desemprego? Será que, com o fim da inflação, a economia volta a crescer, aumentam os empregos e se reduz a violência?
Economistas e sociólogos não têm muito a falar sobre violência.
Isso apesar de vivermos num século marcado por duas grandes guerras mundiais, de 1914 a 1945 -guerras diferentes das longas guerras de outros séculos, que incluíram entre suas vítimas não apenas a população fardada, mas quase todas as grandes cidades da Europa, populações da Ásia e da África, mataram 6 milhões de judeus, criaram imensos contingentes de refugiados e que foram sucedidas por outras tantas guerras violentas, como as guerras da Coréia, do Vietnã, pelas inúmeras guerras do Oriente Médio, pelas chacinas entre as diferentes tribos das nações da África negra e pelo retorno cruel da guerra da Iugoslávia, entre católicos, ortodoxos e muçulmanos.
A violência não inclui apenas as guerras. O crime urbano mata todos os anos um europeu entre cada 100 mil, 10 americanos entre cada 100 mil e 20 brasileiros entre cada 100 mil.
Os marxistas atribuem as guerras à conquista de mercados e à construção de impérios. Talvez seja uma boa explicação para as guerras coloniais do final do século passado e no início deste, mas parece uma explicação insatisfatória para as grandes guerras mundiais e para as guerras religiosas e raciais.
Keynes escreveu um artigo clássico sobre o financiamento das despesas da Grande Guerra. Os economistas liberais não tocam no assunto. As previsões que podemos fazer sobre o futuro da economia mundial e das suas consequências sobre o Brasil partem da idéia de que a última guerra ocorrida foi a última (talvez a mãe de todas as guerras), e que as guerras ainda em andamento ocorrem em países bárbaros e muito distantes.
O crime urbano ou recebe pouca atenção ou se supõe que resulta do desemprego, dos baixos salários dos policiais ou da ineficácia da Justiça e do sistema de punição.
A violência, guerra ou crime urbano é tratada como tratamos a morte -acontece sempre com os outros. Os outros morrem, outros países estão em guerra. Somos como médicos dispostos a discutir resfriados, constipações e reumatismos, mas que não consideram no seu diagnóstico e terapia qualquer possibilidade de câncer.
Não há dúvida que o desemprego é um dos fantasmas atrás do crime urbano e mesmo das guerras. O sucesso e a ascensão repentina de Hitler num país civilizado como a Alemanha dos anos 30 deve ser, pelo menos em parte, o resultado do desemprego e da falta de segurança que dominavam a população alemã depois da hiperinflação de 1923 e da crise que dominava a economia.
Hitler intuiu, sentiu no ar, a carência da população por um Estado protetor, que regulasse tudo, garantisse o emprego e determinasse o lugar de cada um e o que cada um deveria fazer. Além disso, concebeu um ingrediente indispensável para a coesão social -a eleição de um inimigo externo, um bode expiatório, os judeus e os comunistas.
O desemprego não é apenas a perda de uma renda mensal que possa ser atenuada com o pagamento de seguro-desemprego pelo governo. O desempregado é um indivíduo excluído da sociedade -não trabalha, não reconhece nem tem o seu valor reconhecido, não serve para nada.
É um escravo rejeitado, um servo sem gleba para trabalhar, um operário desnecessário. E para ele o crime é uma alternativa, quase que uma vingança contra a sociedade que o excluiu e cujas leis, portanto, não deve obedecer.
Mas os crimes que acontecem nas ruas de todas as grandes cidades do mundo não podem estar associados apenas ao desemprego.
Os "serial killers", o vigia que estuprou a corretora de imóveis na frente da filha, matou-a e depois foi a uma festa com a namorada, o inglês que colecionou cadáveres nas paredes de sua casa, seriam todos pobres e desempregados?
São personagens bastante diferentes do Jean Valjean de "Os Miseráveis", de Victor Hugo, que roubou um pão para comer. Será que a droga é o fato novo atrás da violência urbana do século 20? Mas por que o consumo de drogas tem aumentado tanto?
René Girard, antropólogo francês da Universidade de Berkeley nos EUA, analisando as sociedades primitivas, conclui que a ordem e a civilização das sociedades dependem essencialmente do controle da violência.
Se a violência não for canalizada para uma vítima sacrificial -um cordeiro imolado, um escravo sacrificado, a princesa assassinada em rito sagrado-, volta-se contra os próprios membros da comunidade e estabelece-se o caos.
Para ele, a sociedade organizada é um evento pouco provável. As guerras e a violência são os casos mais frequentes. O sacerdote controla a sociedade porque executa um rito de violência que acaba dando a ele, sacerdote, e a seu parceiro, o rei, o monopólio da violência. Assim, o Estado das sociedades civilizadas teria o monopólio da violência não como resultado da idéia de que a violência é um mal necessário e deve ser limitado ao Estado, mas porque exercer a violência é condição necessária para impedir que a violência venha a explodir entre os membros da comunidade e o caos se estabeleça.
Assim sociedades organizadas necessitariam de uma vítima sacrificial -um inimigo externo, um bode expiatório, sem o qual a confusão e a violência retornariam. Uma visão perturbadora e intrigante, que poderia explicar a coesão das sociedades ameaçadas por inimigos externos, o sucesso da estratégia nazista de selecionar judeus como bodes expiatórios e o processo de violência que domina a história deste século.
Nos países civilizados da América, da Europa e da América Latina, a ausência de guerras teria a contrapartida trágica do crime urbano. Nos países em guerra, a violência é dirigida para os estrangeiros, os infiéis e os de outra cor de pele ou tipo de cabelo. Que visão aterradora!
Talvez existam alternativas menos drásticas que a guerra ou a eleição de um bode expiatório para o controle da violência. Existem sociedades que precisam enfrentar desafios naturais -os esquimós e os tuaregues, cujo desafio de viver num clima inóspito possa substituir o desejo de violência. Existem desafios maiores e que produziram civilizações mais complexas e criativas. A Revolução Americana, em 1786, além de um inimigo externo, os ingleses, tinha muito mais, o sonho da construção de um país diferente dos países europeus, um país de homens iguais e que livres tinham o direito de procurar a sua própria felicidade até com o recurso as armas: um desafio gigantesco no século 18.
A revolução de 1917 e a criação da União Soviética propuseram o sonho de construir uma sociedade de iguais, onde o desemprego, a pobreza e a luta pelo conforto material pudessem um dia deixar de ser a preocupação fundamental da vida.
Essas reflexões têm implicações importantes para a discussão de nossos problemas. A visão corrente de um Estado mínimo -que garante a justiça, a segurança externa e interna e faz todo o resto em parceria, terceiriza ou privatiza, pode ser suficiente para a solução dos problemas de déficit público, eficiência e custo Brasil. Mas é claramente insuficiente para o projeto de uma sociedade organizada e civilizada.
Precisamos um projeto positivo sobre as coisas boas que o Brasil apenas tem, quer manter ou gostaria de ter. Uma proposta que entusiasme, um desafio as alturas do século 21. Talvez o sonho de uma sociedade em que a luta pela produção e pela sobrevivência não nos transforme numa sociedade cruel e pouco afetiva como muitas sociedades de hoje, uma proposta como os revolucionários da independência americana tinham, o sonho americano de liberdade e prosperidade feito para os brasileiros.
Com a promessa do fim da inflação, acaba o último item da agenda negativa (não queremos inflação), mas faltam temas para a agenda positiva que não conseguimos vislumbrar nem nos debates intelectuais nem na vida artística brasileira, à esquerda e à direita, no Brasil. A conclusão é desanimadora: só nos resta eleger inimigos externos para resolver o problema da violência. Podemos invadir as Malvinas como os militares argentinos ou fazer uma nova guerra do Paraguai.

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