São Paulo, segunda-feira, 18 de setembro de 1995
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Chacina vira programa de fim-de-semana

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Entrei no táxi e disse:
-Toca para o morro do Turano.
O motorista me olhou surpreso.
-Vá pelo túnel Rebouças- completei.
Ele continuava me olhando, seriamente. O itinerário era a última coisa que lhe interessava naquele momento:
-Estive lá e vi os corpos- disse ele.
-Quantos?
-Contei nove sendo colocados no rabecão. Mas não devia ter parado para olhar aquilo. Sempre me arrependo...
Entramos no túnel e ele voltou a se concentrar na pista de alta velocidade. Quando saímos, perguntei:
-Havia uma menina?
-Que menina?
-Não viu a menina entre os mortos?
-Não vi menina. Tinha menina? Deus me livre.
Quando chegamos ao morro do Turano, a polícia armada controlava o trânsito: muitos carros da imprensa.
Repórteres de TV paravam diante das negras caixas de som do baile funk e descreviam a noite da chacina. As câmeras lambiam as vielas do morro como sedentos vira-latas.
"Eu só quero é ser feliz/Andar tranquilamente na favela onde nasci. O verso mil vezes cantado pelos adolescentes do Rio soa como uma distante utopia.
Os rastros de sangue apontam para o alto do morro. Vou subindo devagar. Passo por uma birosca fechada e o dono está do lado de fora, tomando cerveja com um amigo.
Falam do tiroteio e o amigo revela que passou a noite fazendo chá de erva-doce para acalmar a mulher. Pergunto se é perigoso continuar subindo e respondem com um olhar enigmático. Sim ou não?
Tive vontade de desistir, mas percebi que estava condenado à solidão da minha escolha. Até que surgiu um outro homem e se meteu na conversa:
-Tá devendo alguma coisa? Se não está, sobe.
Segui os rastros de sangue pensando na doutora Kubler Ross. Vi um documentário onde teorizava sobre as cinco etapas do condenado à morte. Ela falava, claro, de pessoas com doença incurável. Mas admitia que em alguns casos as etapas se condensavam dramaticamente.
Será que o homem que deixou aquele rastro de sangue e foi morrer lá em cima viveu todas as etapas? Sentiu culpa, como os condenados a longo prazo, de ainda deixar assuntos pendentes aqui na Terra? Será que no último momento viveu a paz da aceitação de que era mortal e, afinal, tinha chegado sua hora?
A doutora Kubler Ross que me desculpe mas a trilha de sangue indica passos cambaleantes. O homem estava fugindo e entrou subitamente num barraco, de onde só saiu morto.
Imagino o terror da mulher solitária cujo barraco foi invadido pelo moribundo. Dividida entre prestar socorro e ser fuzilada também, teve de conviver silenciosamente com a morte.
Talvez já a tivesse fantasiado, ela mesma, velha e doente, vivendo seus últimos dias contemplando o pôr-do-sol no Rio Comprido.
Mas como poderia adivinhar que a morte invadiria sua casa e que alguém lhe roubaria o palco de sua cena final?
Nas vielas do morro, vejo alguém gritar para o vizinho:
-Olha o que achei.
O vizinho, um homem corpulento e calmo, responde:
-Isso deve ser 765.
Alguns moradores me evitam. Confundem-me com um repórter. O que sabem os repórteres, o que sabe a polícia? Tiros para o alto, câmeras fotografando a esmo e depois vão embora.
Não se trata de apurar nada em especial -apenas confirmar que o morro do Turano é um cenário da guerra do tráfico.
A dra. Kubler Ross diz, com razão, que as mortes mais difíceis de serem aceitas são as das crianças e adolescentes. Silenciosamente, o morro do Turano sofre com a morte da menina de 11 anos:
-Acho que mataram o homem que a usou como escudo- diz um morador.
Mas a morte dela, que segundos antes dançava funk, é o absurdo total. O que pensou quando se viu presa, dentro do tiroteio? Que dimensões de horror viveu em alta velocidade até fechar os olhos e partir?
Nem a doutora Kubler Ross nem eu podemos imaginar. São mortes que escapam à teoria. São mortes estúpidas que na Bósnia, no Oriente Médio, nos morros do Rio desafiam a própria humanidade.
-É uma pena, pois esse é um lugar lindo de morar- confessa o presidente da Associação de Moradores do Turano, desempregado há muito tempo, mas ainda cheio de esperança.
Desço de novo seguindo o rastro de sangue. Não há mais polícia, nem TV. O governo não apareceu.
O morro volta a ser o que era, como se as fronteiras com o mundo envolvente só se abrissem quando há um tiroteio, assim mesmo para turistas apressados que tudo fotografam mas quase nada aprendem.
Lá embaixo, há um certo alívio: o tiroteio está longe, estão morrendo entre eles...
Já em casa, lavo o rosto, olho para o espelho e me vem à cabeça a mesma frase de um canadense que apareceu num hospital do Rio, sofrendo de amnésia: "Não imaginava que fosse tão velho".

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