São Paulo, quarta-feira, 20 de setembro de 1995
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A chantagem piedosa do ensino religioso

ROBERTO ROMANO

Desde Lutero e Galileu a Igreja Católica comete erros por desrespeito à consciência humana. As desculpas chegam tarde. Elas não curam as feridas abertas pelo autoritarismo ortodoxo nas suas tentativas de vampirizar os poderes laicos. Esse hábito volta-se contra a comunhão eclesiástica.
Exemplo cruel é a Concordata de Império entre o Vaticano e Hitler, a qual ajudou a destruir milhões de judeus, irmãos nossos, enviados para os campos da morte. Base idêntica tiveram os santos negócios com Mussolini, Franco, Salazar. Nesses atos, a cúpula da igreja preocupou-se, entre outros privilégios, com a educação religiosa, alavanca dos interesses católicos.
No Brasil, a igreja apoiou a ditadura Vargas e o regime castrense. É mentira dizer que a CNBB, na sua totalidade, foi contrária ao mando ilegítimo. O golpe de 1964 recebeu aplauso daquele organismo. O AI-5 foi abençoado pela instituição. Pequena minoria de bispos, padres e leigos resistiu ao arbítrio.
Os seus pares governistas foram os censores mais tenazes. Para quem duvida de uma só dessas afirmações, estou disposto a indicar documentos idôneos.
Os militares pagaram dividendos políticos para a hierarquia católica. No ensino de moral e cívica, a religião dominante venceu, aparentemente, compartilhando a cabeça dos jovens com a doutrina de segurança nacional. Apogeu da "civilização cristã". No fim do governo armado, setores populares aderiram aos religiosos livres, dando-lhes respaldo para resistir à truculência dos conservadores. Agora, estes assumiram o controle total da CNBB, destruindo o trabalho de suas bases.
A liderança da igreja montou uma grande máquina de chantagem junto ao Parlamento e incluiu o ensino religioso na Carta de 1988. Os bispos sabem que os leigos responsáveis não aceitam uma tática que impele a igreja para a "gaiola de ouro". No Império, todos os "privilégios" sufocaram os católicos. Como cristão, compreendo a angústia episcopal diante das naves desertas. Mas como estudioso dos vínculos entre Igreja e Estado, e destes com a sociedade, sei que o regalismo é nocivo para a vida civil e para a comunidade religiosa.
O governo paulista foi dominado pela chantagem do ensino religioso. Os bispos conseguiram o absurdo pagamento de catequistas aos milhares -disfarçados de professores- pelo poder público. Os antístites não recuam nem sequer diante de sofismas contra as escolas leigas.
No programa "Opinião Nacional" da TV Cultura, ouvi um deles discutir o assunto e propor a diferença entre "educação" e "ensino". A primeira seria plenamente humana, porque leva em conta o prisma religioso. O segundo não atingiria esse clímax, porque é alheio ao sagrado.
Não é correto afirmar que a transmissão das ciências e artes, somada à ética, apenas veicula informações. O professor honesto não ensina crenças aos jovens no campo da física, das matemáticas. Porque acreditaram nas "ciências" nacional-socialistas, os estudantes alemães aprenderam que os judeus eram biologicamente "inferiores". Nesses planos, a razão deve ser despertada com todo o sentido crítico possível.
Também não é verdade que as doutrinas cristãs apenas eduquem. É conhecido o fenômeno de sacerdotes e bispos que possuem informações teológicas refinadas, mas sem fé. Esta representa um dom divino que não brota dos bancos escolares. Dizer que a marca da escola leiga é "apenas" informar significa diminuir a dignidade da consciência humana.
O Executivo estadual cedeu aos bispos parte de sua soberania. O governo que arrancou verbas da pesquisa universitária, dizendo fazer isso para melhorar a vida dos professores do segundo grau, agora aceita manter catequistas de um culto específico. Os pastores eletrônicos são acusados de extrair dinheiro do povo. O mesmo faz agora a Igreja Católica, por via oficial.
Na essência, não há diferença entre Edir Macedo e os bispos que mandam na CNBB. Nas investigações científicas, há esperança de vida para a população. E de sobrevida no próximo século. Com os laboratórios fechados e o dinheiro público posto a serviço do catolicismo político, crescem as sombras de nosso futuro: milhões de brasileiros penetram no século 21 sem ciência e técnica, sem comida, mas com muito fanatismo e ignorância.
O dinheiro negado aos "campi" não ajudará os professores do segundo grau. Quando estes exigirem salários e o governo disser não ter recursos, como justificar austeridade, com as milhares de novas admissões catequéticas? O Conselho Estadual de Educação realizará um corte terrível: disciplinas serão desalojadas para acolher a catequese.
No lugar das ciências, logo os alunos aprenderão, com os pastores eletrônicos -estes saberão aproveitar a brecha aberta pela CNBB-, as técnicas para curar Aids, câncer e todas as doenças do bolso e do espírito.
Sim, pois como todas as medidas eclesiocêntricas, a imposição do ensino religioso será um desastre para a Igreja Católica. Ela deveria tudo fazer para aumentar o fervor dos seguidores.
Com semelhante atitude, ela arrefece o seu entusiasmo. Afinal, para que se preocupar com a fé e sua expansão se existem burocratas -e pagos pelos outros!- encarregados desse mister? Esclerosada pelo oficialismo, a igreja logo verá as salas onde se ensina "religião" invadidas pelos obreiros das seitas concorrentes, canalizando espaço para os berros dos milagrosos "evangélicos".
Se a igreja quer vencer a secularização e as crenças rivais, ela precisa buscar, na sua própria alma, as forças para se expandir. Privilégios abalam democracias frágeis como a nossa. Consultem os bispos a história eclesiástica e percebam o que acabaram de realizar.
A tentação do poder mundano foi denunciada pelo senhor. "Vade Satana: Scriptum est enim: Dominum Deum tuum adorabis, et illi soli servies." A CNBB pisou o Evangelho ao apoiar o regime castrense. Novamente ela opta pelo mando, exigindo o "auxílio" de César para sua política.
O maligno "favorece" a tática episcopal com favores estatais. Desse modo, ele hipnotiza os fiéis, esvazia as igrejas. Para conquistar pessoas fervorosas e conscientes, os pastores devem converter-se ao Verbo e fugir dos instrumentos coercitivos e dos oportunismos.
Quem segue a igreja tangido pela força ou astúcia política, cedo ou tarde a despreza, ao perceber os meios repulsivos que servem aos alvos pouco veneráveis. Isso ocorreu com Lutero e Galileu, com todas as vontades livres do mundo moderno.

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