São Paulo, domingo, 24 de setembro de 1995 |
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A confiante entrega a uma tradição literária Poeta americana filia-se à geração anterior a sua HAROLD BLOOM
Elizabeth Bishop situa-se, assim, integralmente numa tradição de poesia norte-americana que tem início com Emerson, Jones Very e Emily Dickinson e vem culminar em certos aspectos de Robert Frost, além de Wallace Stevens e Marianne Moore. É uma tradição marcada pelo firme controle retórico, por uma autoridade moral explícita e, em certos casos, por sua rigorosa economia. Os últimos versos de "Five Flights Up", que encerram o livro "Geography III" (1976), de Bishop, são um bom exemplo do tipo de autoconhecimento característico desta tradição: He and the bird know /everything is answered, all taken care of, No need to ask again. -Yesterday brought to today /so lightly (A yesterday I find almost /impossible to lift.) "Ele e o pássaro sabem que tudo está respondido/ tudo arrumado/ não é preciso perguntar de novo./ -Ontem trazido a hoje, com tão pouco esforço!/ (Um ontem que para mim é quase impossível de erguer)". Esses versos comoventes exibem um pathos mais desguarnecido do que a poeta jamais se permitiu em outro lugar. Mas há sempre um paradoxo no contraste entre uma poesia de subjetividade profunda, como a de Wordsworth, Stevens, ou Bishop, e uma arte confessional, como a de Coleridge e os principais contemporâneos de Bishop. Quando se lê "The Poems of Our" de Stevens, ou "The End of March", de Bishop, o que se encontra é a auto-revelação irresistível de uma consciência profundamente subjetiva. Quando, por outro lado, se lê um poema como "Skunk Hour", de Lowell, ou um dos sonetos de Berryman, o que nos confronta é uma opacidade -que é só o que o modo confessional pode oferecer. A força da tradição de Bishop está numa clareza que não é apenas um fenômeno de superfície. É uma força cognitiva, uma força do conhecimento, que ultrapassa a filosofia e a psicanálise em sua capacidade de expor verdades humanas. Entre seus poemas, há alguns maiores do que o relativamente juvenil "The Unbeliever" (O Descrente), do seu primeiro livro, "North & South" (1946), mas gostaria de me concentrar sobre ele, porque de todos é o que, pessoalmente, mais me atrai. Não se compara, em potência e amplitude, a "The Monument", "Roosters", "The Fish", "The Bight", "At the Fishhouses","Brazil, January 1, 1502", "First Death in Nova Scotia" ou a tríade extraordinária, da última fase: "Crusoe in England", "The Moose" e "The End of March". Estes dez poemas ultrapassam "The Unbeliever" por sua sabedoria e autoridade. Mas eu me pego caminhando por aí, certos dias, e entoando "The Unbeliever" para mim mesmo, este sendo um daqueles poemas que a gente nunca mais perde, uma vez que o conhece (e uma vez que o poema também, de sua parte, nos conhece). As cinco estrofes são variações da epígrafe, do escritor e pregador seiscentista inglês, John Bunyan: "Ele dorme no alto de um mastro". A figura de Bunyan diz respeito à condição da descrença; a de Bishop, não. As três personas do poema exemplificam três posições retóricas e podemos, assim, pensar nelas como três tipos de poeta: a nuvem, a gaivota, o descrente. A nuvem é Wordsworth ou Stevens. A gaivota é Shelley ou Hart Crane. O descrente é Emily Dickinson ou Bishop. Nenhum é capaz de sobrepor-se aos outros, e o mar cintilante quer destruí-los todos. A nuvem, poderosamente introspectiva, observa não o mar, mas sua própria subjetividade. A gaivota, ainda mais visionária, não olha nem para o mar nem para o ar, mas para sua própria aspiração. E o descrente não discerne nada; mas o mar é observado no seu sonho, "que era: 'eu não devo cair./ O mar cintilante lá embaixo quer que eu caia./ É duro como diamante; ele quer destruir a todos nós' " . Essa, me parece, é a realidade do famoso olhar de Bishop. Como o de Emily Dickinson, sua verdadeira precursora, ele confronta a verdade: o que mais importa ver é impossível de se ver, pelo menos com os olhos abertos. Uma poesia que se abre a este modo de observação vem se situar num limite muito fino, no qual o que mais importa dizer é virtualmente impossível de dizer. Podemos concluir contrastando a maravilhosa figura do leão, em "The End of March", de Bishop, com o uso incessante da mesma figura em Stevens. Neste, o leão tende a representar a poesia como força destrutiva, a imposição da vontade da potência do poeta sobre a realidade. A imagem chega a seu ápice em "An Ordinary Evening in New Haven": "Diga de cada leão do espírito:/ É um gato de transparência lustrosa/ Que brilha só com um brilho noturno./ O grande gato deve se erguer potente à luz do sol". Contra a noite destrutiva, em que todos os gatos são negros, até os transparentes, Stevens oferece a si mesmo, como um possível leão, potente à luz da idéia-das-idéias. Eis agora o que eu interpreto como a resposta carinhosa de Bishop: They could have been teasing /the lion sun, except that now he was behind /them -a sun who'd walked the beach /the last low tide, making those big, majestic /paw prints, who perhaps had batted a kite /out of the sky to play with. "Poderiam estar provocando o sol leão/ exceto que agora ele estava às suas costas/ -um sol que caminhara ao longo da praia na última maré baixa,/ deixando aquelas grandes, majestosas marcas de patas,/ e que talvez tivesse abatido do céu uma pandorga para brincar." Um sol leão à maneira de Stevens, sem dúvida, mas com algo de melhor para fazer do que se erguer potente à luz do sol. O caminho para longe da poesia como força destrutiva só pode ser por meio do jogo, do jogo das figuras da poesia. Confiantemente entregue à sua tradição, Bishop joga profundamente com essas figuras. Emily Dickinson, Marianne Moore e Elizabeth Bishop fazem pensar em Emerson, Frost e Stevens, nessa tradição, com uma diferença que não se deve meramente à natureza, ou à ideologia, mas ao exercício supremo de uma arte. Tradução de ARTHUR NESTROVSKI Texto Anterior: PARA MANUEL BANDEIRA, COM UM PRESENTE Próximo Texto: A poeta vê o Brasil Índice |
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