São Paulo, domingo, 24 de setembro de 1995
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Entenda o que foi a revolução pasteuriana

MOACYR SCLIAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Louis Pasteur fez mais que estudar micróbios ou descobrir vacinas. Para usar a expressão de Thomas Kuhn, ele introduziu um novo paradigma científico. O que teve repercussões assombrosas.
Como um espectro, as doenças infecciosas acompanham o ser humano desde o seu surgimento; até mesmo as múmias de faraós egípcios mostram marcas da varíola, tão comuns na antiguidade que os chineses não davam nome às crianças enquanto elas não sobreviviam à doença.
A lepra ocupa um bom espaço do Antigo Testamento, a malária apressou o fim do Império Romano, a peste aterrorizou a Idade Média, a sífilis acabou com a euforia renascentista, a tuberculose inspirou os românticos -e liquidou-os também. Mas a causa de tais pestilências continuava um mistério.
Sim, a vontade divina, sim, a bruxaria - mas de que maneira? Qual o substrato material das pragas? Nem mesmo a descoberta do microscópio, no século 17, ajudou muito: os primeiros pesquisadores estavam demasiadamente extasiados com os "animalículos de esperma", os espermatozóides, para pensar em micróbios.
Foi a primeira alusão à possível existência de micróbios, mas não obteve adeptos. A idéia que persistiu até o fim do século 19 foi a do miasma: emanações venenosas que causavam doença. O nome malária, maus ares, alude a isto.
Em meados do século 19, o doutor John Snow, que não era pesquisador nem sanitarista, mas anestesista da rainha Vitória, resolveu estudar a transmissão do cólera, à época tão frequente em Londres quanto em Calcutá.
Verificou que havia uma inequívoca associação entre os casos e o consumo de água (colhida de poços diversos por companhias particulares de abastecimento).
Snow concluiu que a doença era veiculada pela água, e causada "por algo que passa do doente para o são e que tem a propriedade de se multiplicar no organismo."
Essa afirmação, feita dez anos antes que Pasteur desse início à era da bacteriologia e a quase 30 anos da descoberta do vibrião colérico por Robert Koch, desencadeou uma polêmica: contágio (ou infecção) versus miasma.
Não era só um problema teórico. O contágio implicava quarentena, o "cordon sanitaire", defendido pelo autoritário sanitarista Adrien Proust, pai do romancista francês Marcel Proust.
Contra essa limitação de liberdade individual e do comércio estavam não apenas os liberais e a burguesia, então em ascensão, como também radicais; entre eles, o patologista Rudolf Virchow que, na Revolução de 1848 em Berlim, tinha lutado nas barricadas, era líder do partido progressista e fazia feroz oposição ao "chanceler de ferro" , Otto von Bismarck.
Também estavam entre os "anticontagionistas" reformadores sociais ingleses, como Edwin Chadwick. Para agravar ainda mais o conflito, entre os "contagionistas" ingleses não faltavam médicos militares, oficiais do Exército ou da Marinha. Aliás, médicos militares americanos desempenhariam um papel fundamental no esclarecimento da transmissão da febre amarela em Cuba, conquistada pelos Estados Unidos da Espanha.
A "teoria infecciosa" veio trazer um considerável reforço aos "contagionistas". Mas foi recebida com ceticismo.
Quando Pasteur atribuiu a fermentação a microorganismos, o famoso químico alemão Justus von Liebig replicou "isto é o mesmo que dizer que a torrente do Reno é causada pelo movimento das rodas dos moinhos".
Contudo, os êxitos de Pasteur e de seus numerosos, e brilhantes, discípulos, não deixaram dúvidas sobre o acerto de suas teorias. Pela primeira vez na história da medicina identificava-se, com certeza, a causa de doenças. Mais que isso, era possível produzir agentes imunizantes capazes de evitá-las.
Tais possibilidades representavam um apelo irresistível. No Brasil, foram numerosos cientistas que voltaram-se para a microbiologia; entre eles estava um jovem médico que, no fim do século 19, estagiou no Instituto Pasteur: Oswaldo Cruz.
Regressando, ele investigou um surto de peste em Santos, dirigiu o Instituto Soroterápico do Rio de Janeiro e, por fim, foi convidado para assumir a Diretoria Geral de Saúde Pública, correspondente ao atual Ministério da Saúde, no governo Rodrigues Alves(1902-06).
Sua missão: combater a febre amarela, a peste, a varíola -doenças que devastavam o Rio. E que colocavam em risco a economia do país. Os navios estrangeiros recusavam-se a aportar na capital federal; o café, principal produto de exportação, não podia ser embarcado; as divisas não entravam; a dívida externa não era paga -havia até a ameaça de intervenção.
Oswaldo Cruz recebeu plenos poderes para sanear o Rio de Janeiro -e o fez com muita competência, com muita organização, mas também com muito autoritarismo, introduzindo as campanhas sanitárias de cunho nitidamente militar. Nisso não era exceção. Ao erguer a cabeça do microscópio, o olhar que o cientista lançava sobre a sociedade era sobretudo um olhar autoritário. Baseado numa equação simples -doença é igual a micróbio-, o sanitarista desencadeava uma cruzada contra os inimigos invisíveis e seus vetores.
A luta de Oswaldo Cruz contra o mosquito transmissor da febre amarela e contra os ratos, portadores das pulgas transmissoras da peste, foi olhada com deboche pela imprensa e por boa parte da população; mas, quando introduziu a vacinação obrigatória contra a varíola, a coisa mudou de figura.
A vacina antivariólica, introduzida por Edward Jenner, já tinha então mais de um século; apesar disso, não eram poucos os temores que suscitava, sobretudo entre a gente simples.
Os vacinadores de Oswaldo Cruz também não eram muito habilidosos: invadiam as casas, exigiam que todos, mulheres inclusive, expusessem braços e coxas. Tudo isso juntou-se à insatisfação popular causada pela urbanização do Rio, o "bota-abaixo" do prefeito Pereira Passos, que expulsou milhares de pessoas de cortiços e barracos.
Na "Revolta da Vacina" uniram-se sindicalistas, monarquistas, anarquistas, positivistas, capoeiras -todos contra Oswaldo Cruz. Barricadas como aquelas em que lutou Virchow, surgiram nas ruas e a luta foi furiosa -até que o exército logrou dominar a situação. Oswaldo Cruz acabou perdendo o cargo, mas criou, em Manguinhos, um equipamento do Instituto Pasteur.
Na ciência realizou-se; na ciência encontrou consolo. A revolução pasteuriana teve um desdobramento com o surgimento dos antibióticos. Não era apenas possível conhecer a causa das doenças infecciosas, era possível curá-las também. Com o tempo, porém, o binômio agente infeccioso-organismo doente revelou-se insuficiente para explicar o complexo mecanismo das enfermidades.
Ficou claro que o meio ambiente, físico, socioeconômico, cultural, desempenhou um papel importante nessa conjuntura.
A intervenção do ser humano na ecologia microbiana revelou-se às vezes imprudente, às vezes desastrosa: a resistência aos antibióticos e a volta de doenças que se supunham em declínio comprovam-no plenamente. A demonização dos microorganismos, a luta furiosa contra eles, é um enfoque equivocado: mais prejudica o ser humano que os ajuda.
O trabalho começado por Pasteur precisa, pois, ter continuidade. Sem arrogância, sem triunfalismo, mas com a clara consciência de que a relação harmônica do ser humano com a natureza -aí incluídos os germes- é o princípio básico de manutenção da saúde. (Moacyr Scliar)

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