São Paulo, segunda-feira, 25 de setembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Acesso de brancos e negros à Justiça é desigual, diz sociólogo

BETINA BERNARDES
DA REPORTAGEM LOCAL

Há um acesso diferencial de brancos e negros à Justiça Criminal no município de São Paulo e os réus negros tendem a ser mais condenados do que os réus brancos. Essa desigualdade de direitos compromete o funcionamento e a consolidação da democracia na sociedade brasileira.
A conclusão é do sociólogo Sérgio Adorno, que pesquisou os crimes violentos em São Paulo julgados, em primeira instância, em 90.
Adorno analisou 480 processos. Estudou a punição aplicada a crimes de idêntica natureza cometidos por brancos e negros. Ele pesquisou até o momento o crime de roubo qualificado (em que se usam meios violentos), que responde por 38% das ocorrências.
O perfil social dos réus mostra que eles são pobres, brancos e negros, e ambos se igualam no nível de violência. Mas a pesquisa aponta que os réus negros estão situados numa posição social ainda pior que a dos brancos, principalmente no que se refere a instrução e ocupação. Os réus negros analfabetos são 10,8% e os brancos, 3%. Os negros desempregados são 52,2% e os brancos, 45,5%.
Adorno faz palestra amanhã sobre sua pesquisa no curso "Racismo e Racistas: a Trajetória do Pensamento Racista no Brasil", promovido pela USP.

Folha - Como começa o acesso diferencial de brancos e negros à Justiça criminal em São Paulo?
Sérgio Adorno - A polícia é mais rigorosa com os negros. Entre os presos em flagrante, 46% são brancos e 58% são negros.
Folha - A polícia seguiria uma das máximas racistas segundo a qual branco correndo faz cooper e negro correndo é ladrão?
Adorno - A sociedade é preconceituosa e racista e a polícia é uma expressão do racismo da sociedade. Agora, a polícia é instrumento de poder, na medida que vigia e controla. Por ela ter esse poder, os preconceitos acabam sendo mais transparentes e se manifestam de forma menos sutil do que os disseminados pela sociedade.
O fato de os negros serem mais presos em flagrante não é porque eles estejam cometendo mais crimes e a polícia os surpreenda mais. Na verdade há uma maior concentração policial nos espaços de habitação popular negra, fazendo com que os negros fiquem mais vulneráveis à vigilância e mais suscetíveis ao flagrante.
Folha - O fato de a polícia vigiar prioritariamente áreas habitadas por negros não seria a expressão de um problema mais social do que racial?
Adorno - Também, mas essas coisas não podem ser pensadas isoladamente. O preconceito racial é muitas vezes marcado pela inserção social dos negros na sociedade. Há na verdade uma articulação entre o fato de ser excluído pela pobreza e pela condição racial.
Folha - Como se comprova o acesso diferencial à Justiça?
Adorno - Quando se comparam réus brancos e negros, você verifica que 27% dos brancos estão respondendo ao processo em liberdade, ao passo que apenas 15,5% dos negros estão na mesma situação. Isso dá uma dimensão de que, primeiro, o inquérito policial é uma peça muito importante na trajetória do desfecho judicial. Se a polícia vigia mais rigorosamente negros do que brancos, então há uma forte probabilidade de os negros serem preferencialmente mais condenados do que brancos.
Folha - Qual a explicação para os brancos permanecerem em liberdade e os negros não?
Adorno - De um modo geral, os negros tendem a receber um tratamento penal mais rigoroso, representado pela maior probabilidade de sentenças condenatórias. Nos processos de roubo qualificado, você verifica que entre os réus negros processados, 68,8% são condenados. Entre os réus brancos processados, 59,4% são condenados, uma diferença de quase 10%.
Não posso afirmar que haja racismo na Justiça porque não pude observar se há preconceito entre juízes e demais agentes judiciais e não fiz análise qualitativa dos processos, mas verifiquei que a decisão dos casos está ligada à natureza da assistência judicial.
Folha - O que isso significa?
Adorno - A assistência judiciária se divide em dois tipos, a gratuita, proporcionada pelo Estado, e a assistência particular, quando se paga um advogado. Sessenta por cento de brancos dependem de assistência judiciária constituída (particular), enquanto apenas 40% dos negros podem contratar advogado.
Se você tem um advogado constituído, há menor probabilidade de ser condenado. Mas, mesmo assim, dispor de assistência judicial constituída favorece preferencialmente réus brancos. A defensoria particular é responsável por 60% de casos de absolvição de réus brancos e, entre os negros, por apenas 27%.
Folha - Mais uma vez, o fato de negros usarem mais a assistência gratuita não seria por um problema social?
Adorno - Em parte sim, em parte não. Você tem brancos tão pobres quanto negros, só que você acaba favorecendo mais os brancos do que os negros. Pesquisei as garantias constitucionais, como apresentação de provas testemunhais.
Aumenta para os réus brancos a probabilidade de absolvição quando exercem o direito de apresentar testemunhas, o que não acontece com os negros.
Entre os réus brancos que deixaram de arrolar testemunhas, 30% foram absolvidos e 70% condenados; entre os réus negros, 32% foram absolvidos e 68%, condenados. Entre os réus brancos que se valeram do direito de arrolar testemunhas, 48% foram absolvidos e 52% condenados. Entre os réus negros que apresentaram testemunhas, só 28% foram absolvidos enquanto 72% foram condenados.
Folha - Por que isso acontece?
Adorno - É um elemento de racismo, mas é preciso fazer uma análise da complexidade do processo. Provavelmente, os negros apresentam testemunhas negras. São pessoas de seu conhecimento, que vão dizer que ele é trabalhador, pai de família, tentar qualificá-lo. Esse tipo de qualificativo provavelmente funciona quando vem de testemunha branca, mas não quando vem de negros.
Folha - Essa desigualdade compromete a democracia?
Adorno - Esses resultados comprometem o princípio da igualdade de todos perante as leis. Indivíduos que cometeram crimes de idêntica natureza têm tratamentos diferentes conforme a sua condição social e, em particular, conforme a sua condição étnica, racial.
Em última instância, compromete o funcionamento regular da democracia. Isso é grave à medida que no Brasil existe o mito da democracia racial. Aqui se acredita ou que não há racismo ou que esses preconceitos existem, mas não têm um peso grande. Existe o peso principalmente na medida que eles, no caso da Justiça Criminal, definem o destino das pessoas.

Texto Anterior: O mistério de Serjão
Próximo Texto: RAIO X
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.