São Paulo, segunda-feira, 25 de setembro de 1995
Texto Anterior | Índice

Bráulio enfrenta a masturbação sociológica

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O que é isso, bró? O ministro da Saúde se recusa a dizer Bráulio. Sempre que se refere à mitológica personagem diz "aquele nome próprio". O ministro é especialista em coração. Não desce a outros detalhes da anatomia.
Com qualquer criança, Bráulio poderia ter outro nome: Ricardão, Tonho, Bastião, sempre alguma coisa sugerindo grandeza para compensar o embaraço que alguns tamanhos "standard" de camisinha trouxeram ao país.
Bráulio. A Igreja protestou. Não pelo nome próprio, mas pela coisa.
Somos o maior país católico do mundo, acreditamos que Maria concebeu virgem, quem é esse Bráulio, pô? E pra que serve?
Não se trata portanto de pedir a cabeça de Bráulio, mas impedir que exercite sua ação, que provisoriamente chamaremos de braulear.
Nesse caso, o governo teria de fazer a campanha chinesa, aquela que pede para que não se vá para a cama sem sono, não se deite de bruços e se saiba usar o banho frio, em caso de emergência.
Na China, era preciso ler os pensamentos de Mao. Na versão nacional, podemos usar um livro de auto-ajuda: eu vou mudar a sua vida, ou não me chamo Lair Ribeiro...
Grandes campanhas contra a Aids na Europa partem da suposição, talvez equivocada, de que as pessoas continuam fazendo amor, apesar das advertências do papa.
Elas tratam da situação amorosa e mostram o momento exato de se falar em camisinha. Muito cedo, num baile, por exemplo, pode dar a impressão de facilidade. No sofá, quando já estão semidespidos, esse sim é o instante oportuno. Porque na cama, nus; bem, aí é tarde demais.
A campanha brasileira fala da situação amorosa, mas a coloca em segundo plano. O fundamental é o diálogo com Bráulio como se ele tivesse não apenas um nome próprio, independente, mas também uma ação própria, independente.
A sensação que tenho é de que nos equivocamos: queríamos uma campanha contra a Aids e acabamos produzindo uma campanha contra espinhas.
Solidário com os que se chamam Bráulio, tenho dúvidas se usaram a tática correta bombardeando a escolha. Em pouco tempo, o nome se banalizaria e as pessoas acabariam buscando um apelido. Gustavo Adolfo, por exemplo.
Com a súbita retirada, Bráulio ganha uma aura de proibido e pode retornar, aliás como tudo que é proibido.
O mais importante de tudo é que nem chegamos a discutir o crescimento da Aids no Brasil, com os números oficiais se aproximando dos 100 mil, a metade em São Paulo. Para essa estatística a única palavra da Igreja é de ordem moral: abstinência, meus filhos.
Quando menino, vi uma campanha feita por um padre contra doenças venéreas. Chamava-se padre Isnard, comprou um projetor de cinema e exibia corpos destruídos pela sífilis e outros males.
Saímos dali arrasados, prometendo-nos que jamais faríamos amor antes do casamento.
Uma esquina depois, o padre Isnard e suas imagens já haviam desaparecido de nossas memórias: estávamos vivos e atentos às promessas da noite.
Talvez isso me faça entender por que nos tornamos um estranho reino da Dinamarca onde nos defrontamos não com uma caveira mas com o Bráulio: ser ou não ser, eis a questão.
Somos todos filhos de um Deus de mãe virgem. É natural que idealizemos também nossa própria mãe, que haja essa resistência terrível à idéia de que somos frutos de uma relação sexual.
Mas o que fazer, se essa é a verdade de nossa origem: numa cama larga, no portão de casa, no sofá da sala, num motel de estrada, no banco de trás do carro, assim fomos concebidos.
Teríamos uma vida mais longa se aceitássemos essa limitação materna, a substituição terrena do Espírito Santo por bráulios, bimbos, bastiões e ricardões.
Enquanto isso não acontece, continuamos a morrer de Aids e de ciúme dos nossos pais. Amém.
Mas também continuamos a dar nome próprio aos órgãos sexuais, testando sons, contraindo palavras, trabalhando com elas como um poeta que atravessa a madrugada na sua luta mais vã.
Mais de 300 nomes chegaram à agência que coordena a campanha. Amanhã, quando quiserem falar de mulher, suponho que as contribuições sejam também tão ou mais generosas.
Poderemos, finalmente, listar de um lado todos os nomes próprios dos órgãos sexuais masculinos; do outro lado, todos os femininos.
Não sei exatamente aonde nos levaria um estudo desse porte. De qualquer maneira, garanto que enquanto estivéssemos ocupados com isso, pelo menos não sairíamos por aí, correndo o risco de contrair uma doença mortal.
Aliás doença mortal é o nome do bicho que nos assusta. Primeiro nos assustamos com a relação sexual de nossos pais. Depois nos assustamos com a morte, sem perceber que a vida é exatamente isto: uma doença fatal, contraída quando nossos pais fizeram amor e um espermatozóide chamado Pascoal fecundou um óvulo chamado Catarina.

Texto Anterior: MIS tem mostra de objetos dinamarqueses
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.