São Paulo, terça-feira, 26 de setembro de 1995
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A esquerda na pós-modernidade

TARSO GENRO

Com este artigo busco dar sequência às reflexões sobre a situação defensiva da esquerda, analisando os motivos da sua fragilidade e da perda do encantamento, do poder de sedução, da imaginação libertária capaz de abrir os espíritos e voltá-los para a luta emancipadora.
Um programa político, uma plataforma de ações de governo, um projeto novo de sociedade, para que possam ter eficácia, devem seduzir e convencer as pessoas que compõem a base social que quer emancipar-se com as realizações práticas de um novo poder.
A luta anti-reformista para "conservar" não é, porém, necessariamente imobilista: ela pode apresentar-se ativa e propositiva, renovando econômica e juridicamente a forma de dominação, a fim de manter a mesma ordem, com mais vitalidade e racionalidade.
Uma dupla alternativa de reforma, visando conservar ou mudar a ordem, ocorre quando os meios, os procedimentos econômicos e a estrutura produtiva não conseguem mais expandir-se com as instituições criadas sob o cerco de condições culturais e materiais do passado. Nesse passado, tudo tinha mais funcionalidade e havia um ajustamento entre pacto político, condições da produção e a tessitura jurídica do Estado.
Assim, a necessidade de mudar, seja qual for a natureza da reforma, passa a ser uma exigência da vida, pois mesmo a conservação dos privilégios exige outras mediações do Direito e das instituições políticas. Mais: se a "gravidez" da mudança social é exigente com os sujeitos que se apresentam como possíveis reformadores, é absolutamente cruel com os que querem e optam praticamente pelo imobilismo.
A alternativa da modernização conservadora produziu, até hoje, um acordo político que renovou a direita e a fez agendar a necessidade de algum tipo de reforma. Tal movimento não foi respondido por nós -da esquerda- com uma agenda consistente de reformas de outra natureza, capazes de imantar uma parte significativa da sociedade.
Nossa impotência ocorreu por dois motivos: primeiro, o calendário político-eleitoral -face à revolução midiática no controle da opinião pública- não é mais nenhuma ameaça para os políticos ou partidos que descumprem os seus "programas de governo", permitindo que o pacto anterior sempre possa ser reciclado pela manipulação da informação e pela publicidade.
Segundo, o processo democrático clássico, frente às grandiosas revoluções da informática e da microeletrônica e diante da fragmentação completa da sociedade de classes tradicional, é incapaz de formar uma "vontade geral" que se expresse como hegemonia e consenso livremente pactuado, o que torna cada vez mais difícil produzir na sociedade uma consciência crítica, capaz de sustentar um projeto de esquerda.
Tudo indica que é preciso reinventar o processo democrático. Aprofundá-lo e radicalizá-lo, dotando-o de meios de consulta intermitentes à população, apoiados na informática. Revivê-lo e recriá-lo por meio de mecanismos de controle direto da sociedade, compatibilizados com o Estado de Direito. Relegitimar permanentemente o governo não é ficção, mas uma possibilidade real, para que as próprias "saídas" sejam desejadas e construídas pela cidadania.
A questão democrática torna-se, dessa forma, vital para um programa estratégico de esquerda, pois a nova direita só pode aplicar seu programa geral por meio do autoritarismo e da manipulação. E o fará de maneira duradoura se soldar um pacto interno entre os principais grupos sociais incluídos.
Além dessa resposta, precisamos constituir um sistema de alianças, capaz de substituir a velha concepção que guiou a esquerda até dias recentes. Refiro-me àquela baseada na aliança entre as camadas assalariadas da cidade (os "operários") e os pobres do campo (os "camponeses"), que ainda é a visão predominante em nosso meio.
Para propor um novo sistema de alianças, é necessário ajustar um programa econômico e cultural concreto, capaz de articular os interesses imediatos dos excluídos com os dos setores incluídos da sociedade formal, para que a oposição à barbárie não seja meramente retórica ou simplesmente profética de um horizonte cada vez mais longínquo.

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