São Paulo, quinta-feira, 28 de setembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Procurando o voyeur desesperadamente

MOACYR SCLIAR

"Senhor delegado: antes de mais nada, devo dizer-lhe que vacilei muito antes de escrever esta carta. Sou uma mulher modesta, recatada e custou-me considerável esforço colocar no papel as palavras que seguem. Só o fiz porque a notícia que li no jornal fez bater mais forte o meu coração e levou-me a tomar essa decisão que é, em grande parte, fruto do desespero.
Senhor delegado: eu também fui observada por alguém. O que aliás não seria difícil; moro numa casinha de madeira, nos fundos da propriedade de minha patroa, uma senhora muito rica. Quando ela viaja, o que acontece com frequência, eu fico sozinha. E não tenho medo: sou uma moça criada no interior, robusta e corajosa. Além disso, tenho um revólver. Posso botar qualquer assaltante a correr. Por isso asseguro-lhe; não fiquei alarmada quando vi, pela frincha do quarto de dormir, aquele olho. Deu-me raiva, sim, e eu já ia passar a mão na arma para tacar fogo no atrevido, quando, de repente, parei.
Senhor delegado, que olho era aquele, senhor delegado. Não posso garantir, por causa do efeito de luz, mas sou capaz de jurar que era verde. Verde como o olho do meu namorado João, que um dia me abandonou, me fazendo jurar que jamais me deixaria enganar por qualquer homem.
O que mais me impressionou, senhor delegado, foi a expressão daquele olhar. Não era de safadeza, não. Era um olhar puro, senhor delegado. Um olhar apaixonado. Sim, porque era paixão que eu via naquele olhar. Vacilei um pouco -quem sofreu desgosto amoroso vacila, mesmo em se tratando de um olhar-, mas fui até a janela. Quando a abri, não havia ninguém.
Isso se prolongou meses, senhor delegado. E no fim já era uma espécie de namoro. Porque aquele olhar me falava. 'Como você é bonita', dizia (a verdade é que não sou tão bonita, mas o senhor sabe que um olho amoroso vê as pessoas de maneira diferente). Eu, naturalmente, nada dizia. Mas a essa altura o meu coração já pertencia àquele olho. Eu não hesitava, por exemplo, em tirar a roupa no quarto. E até imitava essas moças que se despem em público, essas que a gente vê nos filmes de tevê. Imagino que o coitado ficava maluco, mas paixão é assim mesmo.
Só que ele não aparecia. E aquilo foi me deixando furiosa. Uma noite, de propósito, parei de me despir e tornei a me vestir. Com isso queria dizer: ou você se decide, ou não tem mais exibições. E aí aconteceu uma coisa incrível.
Uma lágrima, senhor delegado. Havia uma lágrima naquele olho que me observava, há tantos meses já. Ele chorava por mim, o meu amado. Corri mais uma vez para a janela, mais uma vez verifiquei que ele não estava no pátio. E nunca mais apareceu. É por isso que estou escrevendo, senhor delegado. Esse rapaz que espiava a moça, será que ele não tem olho verde? Será que não é aquele a quem eu tanto amo?
Interrogue-o, senhor delegado. Interrogue-o com jeito, mas interrogue-o. E se confessar, diga que aqui estou, na frente do buraco da parede, esperando por ele, com o amor de sempre."

Texto Anterior: Sindicato pede prisão de prefeito no MS
Próximo Texto: Qualidade da medicina
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.