São Paulo, segunda-feira, 1 de janeiro de 1996
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A ilha dos voduns

VAGNER GONÇALVES DA SILVA

Repensando o Sincretismo
Sérgio Ferretti
Edusp, 234 págs.
R$ 25,00

Nenhuma ciência deve tanto às ilhas como a antropologia. Desde a expedição ao Estreito de Torres, no século passado, revelando os mistérios da Oceania, passando pelas Ilhas Trobriand, onde Malinowski fundou a moderna etnografia, e chegando até ao Havaí, onde Marshall Sahlins renovou os estudos sobre mito e história (a partir da imponderável morte do capitão Cook confundido pelos nativos com um deus inimigo), pode-se dizer que "continentes de teorias" têm-se formado ao redor do material empírico observado nas ilhas.
No caso da antropologia das religiões afro-brasileiras, o débito se repete: vem de uma ilha, São Luís do Maranhão, uma proposta estimulante de tratar um tema que aparentemente nada mais tinha a oferecer de novo: o fenômeno do sincretismo religioso afro-brasileiro. O antropólogo Sérgio Ferretti aceitou o desafio expresso no título de seu livro, sem repetir o conhecido e simplificador movimento pendular da maioria das análises precedentes que ora enxergam esse fenômeno como resultado espúrio da sujeição da religiosidade africana frente à dominação do catolicismo oficial, ora como estratégia cultural de resistência conscientemente planejada por parte dos grupos dominados (a controvertida teoria do "disfarce cultural").
O trabalho de Ferretti é interessante porque não tem pressa. Pretende discutir o sincretismo reconstruindo os contrastes que o originam, já que são estes, ou as formas como estes entram em contato, que caracterizam essencialmente o fenômeno. E o primeiro contraste aparece desde o início do livro na escolha estratégica que o autor faz de estudar uma modalidade de religião afro-brasileira, na qual o sincretismo não está associado de forma quase taquigráfica como acontece na umbanda, por exemplo.
Seu universo etnográfico é o tambor de mina, nome que recebe na região do Maranhão e Pará o culto aos voduns -as divindades africanas de origem jeje (fon) pouco conhecidas além destas fronteiras. O terreiro escolhido para o trabalho de campo foi um dos mais "tradicionais" de São Luís -a Casa das Minas, considerada pelos "mineiros" (participantes do tambor de mina) a casa-mãe desse culto. Esse terreiro foi fundado no século 19 por ex-escravas, entre as quais provavelmente a rainha daomeana Nã Agontimé, vinda como escrava para o Brasil devido a disputas palacianas no antigo reino do Daomé.
No contexto religioso maranhense, esse terreiro destaca-se por não incorporar em seu panteão entidades nacionais como caboclos, turcos, fidalgos e outros da "encantaria". Como se vê, mais "tradição" que isto, impossível. Ao lado deste tradicionalismo africano, na Casa das Minas existe, contudo, uma forte presença dos ritos católicos, que marcam não apenas a exterioridade de vários momentos litúrgicos, mas a visão de mundo dos participantes, tanto em relação à sua identidade religiosa como étnica.
As adeptas, hoje reduzidas a uma dezena de venerandas senhoras já muito idosas, não dispensam a ladainha rezada em latim diante do altar da Virgem Maria e de outros santos católicos, antes das cerimônias em homenagem aos reis-voduns africanos. Consideram-se católicas e "mineiras", brasileiras e responsáveis pelas "coisas da religião" trazidas pelas suas antepassadas africanas. Argumentos mais do que convincentes para ressaltar a hipótese levantada por Ferretti de "que a presença do sincretismo não descaracteriza a tradicionalidade da religião, pois, além de a tradição ser dinâmica, os 'sincretismos' se fazem com base em elementos constitutivos preexistentes, de acordo com o contexto histórico".
Na segunda parte do livro, são descritos alguns dos cultos sincréticos realizados na Casa das Minas. Com um vigor etnográfico impressionante para captar detalhes e reproduzir cenas que marcam as várias etapas das cerimônias, Ferretti nos apresenta rituais como a "Festa de Averequete" (vodum que "adora" São Benedito), o "Banquete dos Cachorros" (homenagem a São Lázaro, na qual um jantar é oferecido para os cachorros e as crianças), o "Arrambam" (festa de encerramento das atividades do terreiro devido ao período da quaresma), a "Festa do Divino", (geralmente uma cerimônia do catolicismo popular, mas que no tambor de mina é feito no interior dos terreiros), o "Tambor de Pagamento" (festa para pagamento dos tocadores) e o "Tambor de Choro" (ritual fúnebre).
Antes, porém, da reconstituição etnográfica desse instigante universo religioso, o livro apresenta uma abrangente revisão da literatura sobre o sincretismo religioso afro-brasileiro em geral e da região norte em particular, e também sobre o tema da identidade étnica. Fica evidente o louvável esforço do autor por rastrear as principais tendências destes debates, mas a ausência de um quadro mais preciso, a partir do qual se pudesse localizar e analisar os diferentes autores e obras, acaba restringindo os objetivos desta parte. Pela profusão de usos e sentidos com que o termo sincretismo aparece na literatura especializada, tem-se a impressão de que "sincréticos" são tanto os cultos observados como as teorias que buscaram entendê-los. Mas o melhor momento parece ser aquele em que o autor, abandonando uma visão totalizadora do conceito de sincretismo, ressalta seu caráter polissêmico, por intermédio do qual se pode entender o universo religioso afro-brasileiro a partir de "regiões" com graus variados de separação e aproximação entre as tendências que o compõem.
Assim, haveria um sincretismo do tipo convergente, atuando no plano das idéias africanas e de outras religiões sobre a concepção de Deus; um outro sincretismo, marcado pelo paralelismo presente na relação entre voduns e santos católicos; outro, mais perto de uma mistura, expresso na prática dos adeptos de receber os sacramentos católicos sem dispensar os do tambor de mina; e, finalmente, uma separação entre as duas religiosidades, quando se trata de rituais como os ritos fúnebres ocorridos no interior do terreiro.
No capítulo "Considerações Sobre a Metodologia da Pesquisa", o autor relata alguns aspectos do seu processo de aproximação com os membros da Casa das Minas, um grupo extremamente fechado e cioso de suas informações e segredos rituais. Como se sabe, são muitas as dificuldades enfrentadas pelos antropólogos que se dedicam ao estudo das religiões afro-brasileiras, já que estas em geral têm na regra do segredo e das lealdades interpessoais um forte fator de coesão e de hierarquização entre os seus membros. O cuidado que o antropólogo precisa ter para não infringir normas éticas e sagradas, ao escrever seu texto etnográfico, é bem lembrado pelo autor ao citar as palavras de uma antiga chefe da Casa das Minas a um pesquisador: "Entra como entrei, bebe como bebi e sai como saí". E nesse aspecto Ferretti parece não querer correr riscos, ao tratar com certa economia sua rica experiência de mais de duas décadas de contato com o grupo descrito. De qualquer modo, não evitou mencionar as recentes reflexões da antropologia sobre a natureza da relação entre observador e observado e os constrangimentos que presidem a pesquisa de campo.
Com uma reconstituição primorosa dos rituais observados na Casa das Minas, o autor procura mostrar como eventos, idéias, concepções de vida e morte, destino, calendários e outras dimensões presentes na religiosidade africana e católica se aproximam, se interpenetram, convergem ou se distanciam. Objetivo que frequentemente é atingido, salvo quando a opção feita pelo autor de separar de forma estanque uma parte inicial, "teórica", de outra, "etnográfica", resulta num certo prejuízo para a ampliação dos seus argumentos, deixando que alguns filões de sua rica etnografia permaneçam inexplorados analiticamente. Um desses filões, por exemplo, seria a busca de uma relação entre as formas como o sincretismo se manifesta (paralelismo, convergência, mistura etc.) e as dimensões do contexto religioso que essas formas estão tentando pôr em contato ou mesmo separar (panteão, liturgia, visão de mundo etc.).
O melhor do livro é o registro fiel de uma significativa experiência social de tolerância, resistência e convivência que a população dessa "ilha de voduns" nos dá. E ninguém melhor do que os que já viveram ou vivem segregados, fechados, "ilhados", para nos ensinar sobre essa imprescindível atividade humana que é construir pontes entre as culturas.

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