São Paulo, quarta-feira, 3 de janeiro de 1996
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O burocrata erudito - 2

LUÍS NASSIF

Personagem central do modelo político brasileiro é o déspota esclarecido, o burocrata erudito que, sob o manto de racionalidade administrativa, fornece ao político o embasamento retórico para impor seu poder sobre o país.
Em pleno início de Plano Real, a imprensa noticiava movimentações de donas-de-casa em Curitiba e Belo Horizonte visando boicotar estabelecimentos que tivessem aumentado preços na mudança de moeda.
Em vez de celebração, Brasília arrepiou. Nos dias seguintes, o ministro da Justiça e o procurador-geral da República ameaçaram com o fogo do inferno empresários que reajustassem preços.
Ambos recitavam lições decoradas e repetidas por gerações de políticos e burocratas que ancoraram no poder e procuravam álibis para justificar seus privilégios: tudo o que fazemos visa espalhar o nosso bem. Ainda que o resultado final tenha sido consolidar um dos modelos econômicos e sociais mais espúrios do planeta.
Não lhes interessa que a sociedade desenvolva formas autônomas de defesa e de organização -senão, se esvaziará o discurso e se esvaziará o poder.
Essa "retórica do oprimido" responde à questão suscitada pela coluna de ontem: como foi possível a uma estrutura como a do Estado brasileiro, anacrônica e corrupta, legitimar durante séculos um sistema de poder que praticamente manietou quase todas as formas de criatividade social de um das jovens países mais promissores do planeta?
Itamar a d. Pedro
Para ficar mais claro o jogo, transporte-se da República de Itamar para a de Pedro 2º, por meio de José Thomaz Nabuco de Araújo, pai de Joaquim Nabuco, homem que deu forma jurídica a todas as formulações políticas do imperador, permitindo a consolidação de décadas de poder dos conservadores.
Homem público exemplar, pavimentava cada decisão com argumentos racionais e intenções patrióticas. O ponto central de sua retórica era a de que a corte deveria ser a "defensora dos oprimidos" contra a barbárie de periferia.
No episódio da reforma do Judiciário, Nabuco de Araújo pretendeu acabar com a figura do júri popular nas pequenas localidades e instituir a nomeação de juízes a partir da corte. Propunha a criação, a partir do Rio, de uma casta de magistrados, eruditos, preparados para levar a luz da civilização a todos os recantos do país, como cruzados redivivos.
Nos Estados Unidos, a conquista do Oeste se fazia com juízes municipais e xerifes sendo eleitos pela população. No início, os interesses econômicos e políticos locais prevaleciam sobre o conjunto da população. Com o tempo, a população se organizava, impunha o poder da maioria, instituía a civilização e ganhava para sempre o conceito de cidadania.
Sociedades anônimas
Na economia, ocorreu processo semelhante. Nos Estados Unidos, montavam-se empresas em cima de um sistema bancário voltado para a produção. Quando necessitavam de mais recursos, abriam capital e iam buscar dinheiro no mercado, sem mediação política.
No Brasil, a abertura de cada sociedade anônima dependia da aprovação do imperador. E o crédito era firmemente enfeixado pelo poder político, para impedir que a baixa dos juros prejudicasse os rentistas que viviam dependurados na corte.
Em certo momento, Irineu Evangelista de Souza, o barão de Mauá, propôs ao imperador que, se o autorizasse a montar uma S/A, abriria rede de agências de Porto Alegre a Recife e inundaria o país com um volume de dinheiro barato muito superior ao existente na praça.
Com o apoio de Nabuco de Araújo, o imperador veta a iniciativa. Na França, uma sociedade anônima dera um tombo na praça, é a explicação. E, como pai de todos os brasileiros, o imperador não poderia permitir que algo semelhante ocorresse com seus filhos.
Balanço trágico
O balanço final desse modelo já era claro ainda no Império. Tinha-se uma economia estagnada, um Poder Judiciário centralizado e sujeito a toda sorte de interferências políticas, um sistema administrativo coalhado de empreguismo e ineficiência, uma igreja oficial corrupta (a ponto de se ter que importar ordens estrangeiras para tentar moralizá-la), Forças Armadas corruptas e desmoralizadas (que só começam a se soerguer após a Guerra do Paraguai) e 20 e poucas sociedades anônimas, todas autorizadas uma a uma pelo imperador. Tudo fruto da melhor das intenções.
De lá para cá, com nuances diferentes, esse modelo se impôs em todos os momentos da vida nacional. A visão do déspota esclarecido, do burocrata sábio, pavimentou o Império, o Estado Novo, o movimento militar de 1964 e, com a breve exceção do governo Collor, está por trás das políticas setoriais protecionistas, dos modelos de financiamento do BNDES, da manutenção do poder central sobre os recursos do FGTS e do FAT, do modelo tributário centralizado.
Dependendo das reações federativas, abranda-se o controle em determinadas épocas, mudando para deixar como está.
Ao final de seu governo, se saberá se Fernando Henrique Cardoso foi realmente o estadista que cortou definitivamente o cordão umbilical com esse modelo ou se não passou de um Nabuco de Araújo que, por caprichos do destino, tornou-se Pedro 3º.

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