São Paulo, sexta-feira, 5 de janeiro de 1996
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De como apropriar-se de recursos do Tesouro Nacional

ANTONIO CARLOS RODRIGUES ALVES

Será que o leitor conseguiria imaginar um determinado valor financeiro ser remunerado em duplicidade a taxas de mercado, num mesmo período de tempo, não de um dia ou dois, mas precisamente de mais de três meses?
Pois foi exatamente o que ocorreu durante anos com os bancos agentes do SFH, que só tornavam os contratos disponíveis para assinatura do mutuário nos 15 últimos dias de cada trimestre, transformando e indexando o valor do financiamento em UPC (Unidade Padrão de Capital), o qual era creditado, em cruzeiros nominais, às construtoras no trimestre seguinte, sem a correspondente correção da UPC -que só tinha um valor trimestral e que se encontrava defasada da inflação corrente naquele fim de trimestre.
Conhecedoras do fato, elas incluíam no preço final do imóvel a variação trimestral da UPC, fato que, evidentemente, também pressionava a inflação do período.
É difícil precisar a data exata em que essa falsidade se generalizou, mas, de fins da década de 70 até meados de 1985, os bancos agentes do SFH praticaram-na no cálculo e contabilização de empréstimos, aumentando artificialmente o valor inicial dos mesmos.
Os recursos ficavam, assim, remunerados pelas aplicações em títulos públicos durante todo o trimestre anterior e mais alguns dias do seguinte e, de quebra, eram novamente remunerados pela correção automática dos contratos do SFH, visto estarem convertidos em UPC. Não tenho dúvidas de que até no âmbito de negócios privados essa prática não teria amparo legal, mas, quando o Tesouro é chamado a pagar mais uma vez, ainda que parcialmente, pelo mesmo empréstimo e seus acessórios, fica clara a configuração da ilegalidade. E não se diga que não há remédio, pois seria impossível o recálculo de todos os contratos.
Não o é. O assunto é muito grave para tergiversações. Significa mais de US$ 15 bilhões só no que se refere à parte indevida. Será que existe algum argumento de ordem ética, moral, econômica ou principalmente jurídica para justificar esse procedimento e as enormes consequências que se seguiram?
Só a carência de recursos para financiamentos imobiliários que essa expropriação gerou, pelas medidas que o governo tomou para proteger os mutuários, teve como consequência a escassez de recursos para obras de moradias, deixando construtoras à míngua, trabalhadores sem emprego e uma geração de brasileiros sem casa.
Se qualquer funcionário público, por maior que seja seu cargo, por omissão, conivência ou descaso, não tomar as graves providências que esse assunto está a requerer, será passível de enquadramento em crime de responsabilidade.
Basta, por portaria, mandar recalcular todos os débitos governamentais com o FCVS somente a partir da data efetiva da liberação de recursos, "pro rata die" ou não, recomendando aos auditores do Tesouro que exijam a comprovação da data da liberação e que esta fique competentemente arquivada com os devidos extratos, anulando-se, assim, os créditos e todos os papéis já emitidos e as operações, por viciadas em sua origem, de que porventura tenham feito parte, a qualquer título.
E não se venha dizer que o momento não é oportuno, pois a saúde do sistema financeiro nacional está debilitada. Coloca-se, assim, todo o povo brasileiro como refém de uma dúzia de maus banqueiros.
É difícil engolir que uma mera redução de rentabilidade propicie, em pouco mais de um ano, "estouros" tão fantásticos, mesmo considerando a incompreensível demora do BC em intervir. Isso, sim, prejudica a imagem dos banqueiros eficientes e desacredita todo o sistema. Até porque, à vista da impunidade e dos enormes lucros que a medida provisória propicia, todos "cairão de cabeça" em cima da mesma. Só de créditos do FCVS são mais de US$ 50 bilhões que os esperam!
Nossos banqueiros seguiram os "modismos" internacionais, aumentando o nível de alavancagem de suas disponibilidades a patamares absurdos. Já os bancos Nacional e Econômico efetivamente quebraram e não foram só vítimas de uma corrida a seus caixas.
No último dia 17 de novembro, o sr. Gustavo Loyola, presidente do Banco Central, em almoço realizado em São Paulo com representantes de entidades financeiras, desafiou os comensais -e foi exatamente esse o verbo usado- que lhe indicassem um só país que tivesse alcançado progresso econômico sem sistema financeiro forte. O que Loyola deveria ter dito é que não há sistema financeiro sadio em economias enfraquecidas.
Os bancos nacionais, sem fazer nenhum trocadilho, incharam mas não cresceram. Quantas agências bancárias deveríamos ter no Brasil? Desconfio, pelo número das existentes e pelo padrão de monetização da economia, que temos quatro vezes mais. Qual o país em que bancos dão tantos talões de cheque a cada cliente, transformando cada um em um pequeno Banco Central, a indústria e o comércio aceitando e estimulando o cheque pré-datado, coisa de enlouquecer qualquer presidente de banco central de Primeiro Mundo? Tal procedimento consuma um ataque frontal à estabilidade da moeda.
Que quebrem os bancos com problemas patrimoniais, como está acontecendo com milhares de empresas de todos os portes! Essas emissões que estão sendo feitas para salvá-los não têm o condão mágico de ficar "empoçadas" por algum tempo, como as outras recentes, que configuraram tentativas desesperadas de mudanças de rumo e arriscam o futuro do Real. E de nada adiantará, porque essa quebradeira não vai parar aí.

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