São Paulo, sexta-feira, 5 de janeiro de 1996
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Artistas criam com meninos de rua no Rio

MARIO CESAR CARVALHO
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

No próximo dia 12 o Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio será invadido por um bando de meninos de rua. A segurança será reforçada, mas da exposição pode deixar que eles cuidam. Afinal, foram as próprias crianças que fizeram os mil trabalhos que compõem a instalação "Devotionalia".
Concebida por dois artistas -o brasileiro Maurício Dias, 31, e o suíço Walter Riedweg, 39-, o trabalho introduz a sujeira das ruas no mundo habitualmente asséptico da arte contemporânea. São 500 pés e 500 mãos moldados em cera por meninos em ruas do Rio.
Logo que cria o trabalho, similar a ex-votos depositados em igrejas, a criança grava um vídeo em que explica o que é arte, o que é museu e conta seu maior sonho. Pés, mãos e vídeos compõem a instalação.
Há depoimentos desconcertantes. "A gente faz desenhos que acha horríveis. Daí vai ao museu e acha quadros piores que os nossos. Arte é quando cada um faz o que quer", define Ana Paula Silva, 19, que vive em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense (leia abaixo).
"Devotionalia" busca um novo gênero de arte pública -não mais baseada em monumentos, mas na criação junto com o público.
"Não estou interessado em fazer arte para uma elite. A arte tem que descer do pedestal e se interes sar por outras questões sociais, seja a medicina, a física ou meninos de rua", afirma Dias. "Só assim ela vai sair do circulo vicioso em que está", completa Riedweg.
Se você acha que já ouviu esse tipo de discurso na boca de artistas militantes dos anos 60 não está de todo enganado. A diferença é que Dias e Riedweg não acreditam em revolução. Acreditam em troca, em confronto (o mundo das ruas versus o dos museus em "Devotionalia") e em responsabilidade do artista.
Na Basiléia, cidade suíça onde vivem, Dias e Riedweg conseguiram cerca de US$ 38 mil para tocar o trabalho junto a instituições como a Fundação Pro-Helvetia (do governo suíço). Depois do Rio a mostra vai para a Suíça e Holanda.
Para não cair na terra de ninguém que viraram as ruas do Rio, montaram um ateliê-móvel num Uno e foram trabalhar com entidades como a Fundação São Martinho, que abriga meninos de rua, e a Casa da Paz de Vigário Geral.
Criaram em cinco favelas -Vigário Geral, Morro de São Carlos, Morro do Juramento, Vila Canoas e Favela do Coqueirinho- e em outras quinze comunidades, entre as quais meninos jurados de morte por traficantes em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.
Em cinco meses, tiveram o carro arrombado no Maracanã, tiveram que se jogar no chão em Vigário Geral para escapar de um tiroteio, mas encontraram "gente que resolveu não dar as costas para os meninos", como diz Dias.
Essa espécie de "gente que faz" das ruas estará no vernissage da exposição. O projeto No Mundo da Rua vai lançar um sorvete com o mesmo nome, fabricado sob a geral do Maracanã. A Fundação São Martinho apresentará a Banda Irê, um grupo afro com cerca de 30 meninos de rua.
A maior surpresa da dupla, no entanto, foi a docilidade das crianças ao fazer o trabalho. "Fiquei assustado porque não romantizo esses meninos, sei que muitos são violentos, há bandidinhos entre eles", conta Dias.
Ele acha que a docilidade é resultante de uma das características do trabalho -o contato corporal exigido para se fazer a modelagem dos pés e das mãos. O choque da docilidade é ainda maior quando se conhece a história de garotos como L.C.M. Aos 16 anos, já trabalhou para dois traficantes vendendo cocaína. "Tive sorte. Estou vivo e meus dois patrões morreram metralhados", disse L.C.M. à Folha. "Não quero mais saber de cocaína. Quero ser artista."
L.C.M. é uma exceção só no sonho de artista. Perto de 90% das crianças sonham com uma bicicleta, segundo Dias.

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