São Paulo, domingo, 7 de janeiro de 1996
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Giulio Argan anseia pelo design dedicado à sociedade de massa

GIULIO CARLO ARGAN

Lévi-Strauss dividiu a humanidade em duas grandes categorias: "bricoleurs" e construtores. Estes organizam o ambiente da vida, fabricando coisas, ou seja, projetando-as com a mente e executando-as mediante uma técnica; aqueles recolhem as coisas que encontram ou acham e lhes dão um significado e uma finalidade imediata, descartando-as depois. São duas categorias, mas também duas grandes eras: a era dos "bricoleurs" é a dos nômades, dos caçadores, dos coletores, portanto a pré-história; a era dos construtores é a era histórica do cultivo do solo, dos assentamentos fixos, da agregação social, do progresso. A primeira é a era da intencionalidade e do gesto espontâneo; a segunda, a do projeto e do produto. Nesta, tudo é design; na outra, nada.
Há um design em sentido lato: tudo aquilo de que dispõe previamente e que é produzido mediante uma técnica, com vistas ao melhor relacionamento dos indivíduos com o mundo; e há um design em sentido estrito, que implica a vontade de reformar e melhorar a produção de bens necessários à vida. É uma corrente cultural, especificamente artística, que se forma na primeira metade do século, quando as tecnologias artesanais de produção são sucedidas pelas industriais. Foram, então, formuladas teorias e metodologias para a criação de projetos com a intenção de conferir aos produtos uma função educativa, que estava muito além da instrução para uso e continha toda a casuística dos comportamentos sociais.
No campo da produção, ocorreram mudanças qualificativas profundas: emprego de materiais não naturais, mas produzidos pela indústria, separação nítida entre projeto intelectual e execução mecânica, produção de grandes séries de coisas com valor de modelos, padrões. O design era um agente poderoso de uniformização do costume social e de nivelamento das classes: neste sentido, em conformidade com o pensamento socialista progressista. Não é à toa que a teorização, a metodologia e a didática do design têm um lugar e um tempo: Bauhaus de Gropius, república de Weimar.
Após essa fase construtiva, depois da Segunda Guerra Mundial, houve outro ciclo correspondente e outra evolução da tecnologia industrial: automação, grandes séries, perda do interesse pela qualidade de objetos únicos, transição da realização de projetos de coisas para a programação de circuitos produtivos e distributivos, ruptura da relação lógica de causa e efeito entre necessidade e consumo. A tônica sai da produção (construtiva) e vai para o consumo (distributivo), com a perda gradual do conceito de valor como fator de limitação da quantidade do consumo. A primeira fase ainda implicava o problema da arte, assumida como constitutiva da qualidade dos objetos e, consequentemente, da harmonização entre as técnicas inventivas da arte e as técnicas repetitivas da indústria; a segunda, ao contrário, eliminou todas as técnicas projetuais e operativas da arte como estruturalmente incompatíveis com uma tecnologia já capaz de autoprojetar-se e autocorrigir-se. Isso, porém, não basta para anular a finalidade estética do trabalho e da produção: não significa absolutamente que as técnicas historicamente artísticas sejam as únicas capazes de produzir efeitos estéticos nem que toda estética é, como pensava Schiller, educativa.(...)
Leves, coloridas, fantasiosas, práticas, essas coisas constituem uma segunda natureza, compõem o cambiante panorama da vida cotidiana, substituem o fastio das ordens vindas do alto pelo frescor da informação dada, recebida, transmitida, esquecida e substituída. Talvez o projeto dessa segunda natureza (cujo genial paisagista foi Pino Pascali) venha a ser o design de uma sociedade de consumos alegres e não tétricos e vorazes: a resposta quase trocista à carranca dos cientistas infames que estão sempre estudando instrumentos novos e mais ferozes de destruição. Mais do que aprender a construir o ambiente, essa sociedade deverá aprender a familiarizar-se com ele e a utilizá-lo, a nutrir-se dele, a fruí-lo com toda a desenvoltura, tomando, gozando e descartando: e não será mais uma sociedade de construtores, mas de bricoleurs.
Será que a humanidade aprenderá a opor à sociedade da bomba não uma nova Idade Média, como prevêem alguns historiadores, mas uma pós-história (que não é o pós-moderno) que conclua o ciclo do progresso mordendo a própria cauda? Saberão nossos tecnólogos (a despeito dos tecnocratas), presentear o mundo com um design do bricolage?(...)
Assistimos ao declínio (que não foi falência) do design destinado a uma sociedade de elite; desejo sinceramente o sucesso de um design dedicado a uma sociedade de massa, um design de baixo custo e de alto valor, ainda que esse valor seja cambiante, volátil e constantemente renovado. Amém.

Trechos de ensaio sobre design, que será publicado no livro "Retratos de Obras e Artistas", de Giulio Carlo Argan (Martins Fontes)
Tradução de IVONE BENEDETTI

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