São Paulo, domingo, 7 de janeiro de 1996
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A moldagem do caos por um náufrago

HAROLD BLOOM
ESPECIAL PARA A FOLHA

É difícil imaginar outra personagem literária que se aproxime da autoconfiança de Robinson Crusoé. A nudez da alma perante Deus está manifesta no náufrago de Defoe. Ele exige uma competência sublime para lidar com circunstâncias que esmagariam ou enlouqueceriam qualquer homem dotado de uma consciência mais sociável. A habilidade fantástica de Crusoé para construir seus utensílios a partir de quase nada lembra a criação do mundo, gerado do caos pelo Deus solitário do protestantismo.
Naturalmente, isto é uma redução do Deus protestante: o Deus de Milton não teria lugar em "Robinson Crusoé". Mas o robusto Crusoé enquadra-se numa linhagem que remonta ao Adão do "Paraíso Perdido". Os dois são sobreviventes protestantes e transmitem a convicção de que nosso trabalho de todo dia também é o trabalho de Deus. Quando Crusoé engendra e domina o seu contexto, também faz a tarefa de Deus -em grande parte à custa da grandeza divina, pode-se até dizer. A visão algo irônica como o Deus do artesão Crusoé, uma divindade sem personalidade. E Robinson Crusoé tem personalidade?
Se o desassossego em si pode constituir uma postura de vida, então Crusoé, ainda antes de seu exílio na ilha deserta, já dava mostras dessa natureza instável, a própria imagem da inquietação. Talvez Defoe visse no desassossego uma variante do pecado original, ou satânico, como acreditam alguns estudiosos, mas essa idéia me soa duvidosa. O Lúcifer de Milton, antes da queda, é mais do que inquieto: o desejo de ver-se a si mesmo como autocriado, pai e filho de si, está bem mais perto da perversão do que poderia o simples desassossego.
Crusoé, eu concordo, interpreta sua agitação como uma forma de desobediência, mas nada nos obriga a aceitar as suas interpretações, que não têm absolutamente o endosso de Defoe. O náufrago puritano não é nem um Jonas, nem um filho pródigo, embora invoque essas duas figuras como emblemas de sua condição. "Robinson Crusoé" não é outra versão de "The Pilgrim's Progress", o grande manifesto seiscentista do puritanismo -muito embora o dr. Samuel Johnson incluísse as obras-primas de Defoe e Bunyan entre os únicos três livros que desejava mais longos. O terceiro era "Dom Quixote", e Crusoé tem tão pouco em comum com Quixote quanto com o cristão da alegoria de Bunyan. O protagonista de Defoe não está a caminho nem do ludismo nem da regeneração: sua única tarefa é dominar o ambiente.
Dominar a natureza significa alterá-la; mais do que isto, securalizá-la. Crusoé pode começar lamentando seu desassossego como pecado original, mas o leitor, no fim, comemora essa inquietação, uma primeira forma de sua sobrenatural energia, capaz de converter a ilha numa espécie de paraíso. Quando o desassossego é transformado em trabalho, seu estigma desaparece e a solidão de Crusoé passa a ser vista como um tipo de saúde, que o torna mais adequado a triunfar na luta pela sobrevivência. Pós-puritano, embora sem deixar o protestantismo, Crusoé não fala mais do pecado original: limpou sua alma pelo trabalho.
Leopold Damrosch aponta a ironia que existe em Crusoé como um prenúncio dos poetas românticos, sem a introspecção romântica. Crusoé se cria a si mesmo na ilha, mas, como não reflete sobre qualquer forma de interioridade envolvida na façanha, escapa de enxergar-se como Prometeu ou Satã. Torna-se, sim, o seu próprio grande Original, um conquistador sem precursores; mas não tem consciência disto, e tanto melhor que não tenha. Como diria Damrosch, a solidão de Crusoé é uma força, mas não uma força consciente, e não está, portanto, sujeita a todas as doenças e vicissitudes da autoconsciência.
Seja o que for, esse processo de transformar a inquietação em potência auto-suficiente tem pouco a ver com a personalidade em si. A secularização não é primariamente um processo psíquico, e Robinson Crusoé tem bem menos personalidade do que a exibida constantemente pelo Satã de Milton. A interioridade, condição e tema de Milton, é algo de estranho a Defoe, acima de tudo porque representaria um gasto desnecessário na economia psíquica.
Ian Watt observa que "a visão do indivíduo em Defoe estava tão completamente dominada pela busca racional dos interesses materiais de cada um que não era possível haver espaço para um instinto natural, ou qualquer necessidade afetiva mais elevada". E no entanto não era exatamente o auto-interesse material -sem dúvida algo que move Crusoé- o que James Joyce mais apreciava no herói de Defoe: "O instinto heróico e cauteloso do animal racional".
Ninguém até hoje descreveu Robinson Crusoé melhor do que Joyce: "A independência máscula; a crueldade inconsciente; a persistência; a inteligência lenta, mas eficaz; a apatia sexual; a religiosidade prática e equilibrada; a calculada taciturnidade". Vistas em conjunto, estas qualidades resultam num indivíduo profundamente atraente para seus leitores, jovens ou idosos, que almejam identificar-se com um sobrevivente e que encontram em Crusoé uma imagem da continuidade entre a fantasia infantil e os acordos maduros com a realidade.
Em nossos dias parece impossível recriar Robinson Crusoé sem ironia. Pode ser uma ironia carinhosa, como é o caso de dois grandes poemas devotados a ele: "Crusoé in England" ("Crusoé na Inglaterra"), de Elisabeth Bishop, e "Man Friday" ("O Homem Sexta-Feira"), de A.D. Hope. Bishop evoca principalmente uma perda irônica de intensidade e significado, à medida que Crusoé contempla o esvaecimento de seu verdadeiro contexto de solidão e autoconfiança: "A faca ali na prateleira - /exalava sentido, como um crucifixo. /Estava viva. Quantos anos eu /não lhe roguei, não lhe implorei que não quebrasse? /Eu conhecia de cor cada talho e arranhão /a lâmina azulada, a ponta sem fio /as linhas da madeira no cabo... /Agora ela não olha mais para mim. /A alma viva escorreu para fora. /Meus olhos param nela e continuam".
O Crusoé de Hope, simultaneamente mestre e pai, lamenta a perda de um Sexta-Feira só "resgatado e levado para casa" com a morte. Irônico como pode soar, ainda assim isto é um avanço, comparado ao Crusoé de Defoe, que não parece sofrer quase nada com a perda. Tanto Bishop como Hope vêem-se obrigados a prescrever uma dose maior de emoção a Crusoé e Sexta-Feira do que Defoe mostra-se disposto a dar. O imperialista protestante, politicamente incorreto Defoe jamais sentimentaliza sua personagem. Será interessante observar como Robinson Crusoé poderá, agora, sobreviver ao naufrágio, nas novas ondas do multiculturalismo.

Tradução de ARTHUR NESTROVSKI

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