São Paulo, domingo, 7 de janeiro de 1996
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A pista errada do dinossauro

RICARDO BONALUME NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A "ciência" por trás do filme "Jurassic Park - Parque dos Dinossauros" levou um rude golpe da ciência de verdade. Cada vez mais se parece com fantasia a idéia de que algum dia se possa reconstruir um dinossauro usando material genético de fósseis.
O filme é de 1993. Em 1994 pesquisadores afirmaram ter obtido DNA (material genético) de ossos de dinossauros do Cretáceo (os dinossauros tiveram seu auge nos períodos geológicos conhecidos como Jurássico, de 190 a 135 milhões de anos atrás, e Cretáceo, de 135 a 65 milhões de anos atrás, quando se extinguiram).
Agora se sabe que o DNA proveio de contaminação, apesar das medidas rigorosas de assepsia.
Mas a descoberta do erro também tem suas virtudes. Não se trata de uma mera negação da pesquisa anterior. Os dados obtidos podem, ironicamente, ajudar a entender a origem de outros animais -notadamente as diversas espécies de seres humanos que habitaram (e habitam) a Terra, como o extinto Homo erectus e o atual Homo sapiens.
Ao buscar esse DNA (ácido desoxirribonucléico) antigo, os cientistas não pretendem obter dados para recriar um bicho antediluviano, mas sim complementar o conhecimento obtido pelos ossos fósseis.
Apesar de sua importância para o estudo das formas de vida passadas e presentes, os ossos pouco têm a dizer sobre o resto de um animal. Como eram os órgãos internos? Como era a pele? O sangue era quente ou frio? Como ele se comportava em relação à prole?
Respostas a estas questões podem ser achadas nas sequências de DNA que constituem o genoma, o conjunto do material genético de um ser, ou a "receita" para a sua produção.
O autor do livro "Jurassic Park", o escritor Michael Crichton, se aconselhou com cientistas para produzir seu best seller sobre a criação de dinossauros de proveta. Isso ajudou a tornar um enorme sucesso o filme dirigido por Steven Spielberg.
A premissa básica do livro/filme é correta, desde que ajudada por monumental dose de sorte. Teoricamente, insetos do passado preservados em âmbar (uma resina) poderiam ter dentro deles restos de sangue que poderiam ser de dinossauros.
O sangue poderia ter ainda em bom estado parte do material genético do animal, possivelmente em melhores condições do que aquele que se poderia tentar achar em ossos.
Teoricamente seria possível extrair esse DNA e ampliá-lo. Nesse ponto Crichton cita uma técnica de fato existente, e que é a base das pesquisas. Trata-se da PCR (sigla em inglês de reação em cadeia de polimerase), um processo capaz de pegar um pedacinho de DNA e aumentar sua quantidade replicando-o muitíssimas vezes.
A técnica PCR já foi usada para recuperar pedaços de DNA de animais extintos ou de plantas com milhões de anos. Mesmo DNA de insetos (mas não de dinossauros) preservados em âmbar já foram amplificados.
O problema é que esse DNA é frágil e vem muito incompleto. É como ter apenas uma parte pequena do projeto de uma casa. Como adivinhar a arquitetura do resto? No filme é feita uma mistura com material genético de bichos parecidos, como répteis e anfíbios de hoje. Nada indica que isso realmente funcione.
Esse "coquetel" de DNA também parte de uma premissa razoável. Por meio da comparação das sequências de DNA é possível criar uma árvore de família dos seres vivos.
Essa maneira de classificar os seres vivos de acordo com o relacionamento evolutivo entre eles é chamada de "filogenética". Por exemplo, é possível mostrar que o "primo" mais próximo geneticamente do ser humano é o chimpanzé.
"Embora nós não tenhamos sido bem-sucedidos na obtenção de sequências de DNA de um grande número de locais diferentes, alguns dos quais são mais adequados para a análise filogenética, o resultado demonstra que a recuperação de DNA de ossos bem preservados do período Cretáceo pode ser possível", escreveram em 94, na revista científica americana "Science", os pesquisadores que acharam que tinham reproduzido DNA de dinossauros, Scott Woodward, Nathan J. Weyand e Mark Bunnell.
Eles foram otimistas. Em um artigo na revista científica britânica "Nature", no final do ano passado, os pesquisadores Caro-Beth Stewart e Randall Collura mostraram que o "DNA de dinossauro" era na verdade proveniente de mitocôndrias de células humanas.
Mitocôndrias são pequenas estruturas que, além de servir para a produção de energia para as células, contêm um material genético diferente daquele que se encontra no núcleo celular (que é o código genético principal, a "receita" propriamente dita do ser).
Esse é o charme da pesquisa que negou a existência do DNA cretáceo. A sequência de DNA de fato encontrada parece ser a de um gene que codifica uma proteína, citocromo b, associada ao DNA de mitocôndria. Mas no caso essa sequência estaria, curiosamente, no núcleo celular.
"Essas cópias nucleares do DNA mitocondrial podem confundir estudos de filogenética e de genética de populações, e ser uma fonte insidiosa de contaminação de DNA 'antigo' e forense", afirmam Stewart e Collura.
A última frase revela que a pesquisa não tem interesse apenas como "ciência pura". Testes de DNA são cada vez mais usados em processos judiciais, para demonstração de paternidade ou identificação de um criminoso, e qualquer coisa que possa afetar sua precisão precisa ser melhor investigada.
Estudando DNA de seres humanos e de "parentes" distantes, como o orangotango, os dois pesquisadores mostraram que ocorreu uma "fuga" do DNA mitocondrial para o núcleo celular pelo menos duas vezes na evolução dos primatas (ordem de mamíferos à qual pertencem homens e macacos).
O DNA mitocondrial que foi para o núcleo deixa de funcionar, passando a ser "lixo" genético, ou um "pseudogene" (já se sabe que nem todo DNA constitui "genes", as unidades básicas na transmissão das características hereditárias).
A importância dessa descoberta pode ser avaliada por uma outra pesquisa parecida, publicada simultaneamente na mesma edição da "Nature".
Pesquisadores da Universidade de Munique -Hans Zischler, Helga Geiseret, Arndt von Hãseler e Svante Pããbo- mostraram que esse DNA mitocondrial que migrou para o núcleo celular pode ser considerado um "fóssil" valioso para os estudos filogenéticos.
Isso acontece devido aos ritmos diferentes de evolução das sequências de DNA. Aquele material genético que se encontra nas mitocôndrias muda mais rapidamente que o que fica nos núcleos. Mas o DNA mitocondrial que "fugiu" para o núcleo tende a evoluir com a velocidade nuclear. Ele pode portanto ser considerado um fóssil molecular, um exemplo de como era o DNA mitocondrial em gerações anteriores.
O "fóssil molecular" tem uma vantagem: está em células humanas. Como o DNA mitocondrial muda muito, mesmo o DNA do chimpanzé é muito diferente do DNA humano para poder ajudar na reconstrução da árvore familiar. (Se fosse fácil tirar DNA de qualquer osso, seria possível checar diretamente parentes bem mais próximos, como o Homo erectus.)
A pesquisa de Pääbo e colegas abriu uma janela para o passado. Eles identificaram um desses "pseudogenes" no genoma humano, uma sequência de DNA que mostraram que, milhões de anos atrás, pertencia ao material genético do primo extinto -justamente o Homo erectus.

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