São Paulo, domingo, 7 de janeiro de 1996
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A paz no Líbano

AMIN GEMAYEL

Uma oportunidade de paz se abre a todos os povos e nações do mundo. Da África do Sul à ex-Iugoslávia, passando pelo Oriente Médio, os esforços internacionais foram coroados por sucessos a fim de dar a cada um desses povos e a todas essas nações seu direito elementar de liberdade e de autodeterminação.
Entretanto é paradoxal assistir, ao mesmo tempo, à agonia de um povo e de uma nação -o povo libanês e a nação libanesa. Nesse Oriente Médio atormentado e devastado pelas mais terríveis guerras -uma região que se destacou pela intolerância e pelo extremismo- nosso país e nosso povo sempre serviram de exemplo de democracia e de tolerância, e é ele e os valores que defende que, hoje, correm o risco de sofrer as sérias consequências das negociações de paz no Oriente Médio.
A paz libanesa, que para determinada opinião pública internacional está instaurada nesse país de cedros, é na realidade apenas a "paz dos cemitérios". O que é considerado paz no Líbano nada mais é que uma segurança relativa em algumas regiões de nosso território, enquanto sobre uma outra parte, que não deve ser desprezada, a milícia Hizbollah infectada em Damasco e em Teerã, as milícias palestinas contrárias ao processo da paz, a milícia Exército do Sul do Líbano a soldo de Israel e inúmeras facções paramilitares próximas dos ocupantes continuam a castigar o país e provocam graves distúrbios de segurança que custam a vida de um bom número de cidadãos pacíficos.
O mais grave é, entretanto, a desnaturação de nosso sistema tradicional democrático e liberal e o desmantelamento das instituições constitucionais, como prelúdio de uma verdadeira anexação do Líbano e sua fusão com outras entidades, em particular com a Síria. Uma Síria que, aliás, jamais reconheceu plenamente a independência do Líbano e que até agora se recusa a estabelecer relações diplomáticas conosco.
Fortalecida com a presença de seus 40 mil soldados instalados sobre nosso território, a Síria considera ser este o momento sonhado para realizar seu sonho da Grande Síria. Após se impor pela força das armas aos poderes públicos à frente dos quais colocou seus próprios representantes, a Síria instituiu um conjunto de medidas cujo objetivo final é o de dobrar a entidade libanesa.
Como exemplo mencionarei apenas duas medidas gravíssimas:
1) A desnaturação da demografia libanesa: consciente de um dia ser obrigada a retirar seu exército do Líbano, a Síria imaginou um ardil sagaz: mudar a demografia libanesa outorgando a nacionalidade libanesa a aproximadamente 500 mil cidadãos sírios.
É fácil imaginar o impacto desse novo meio milhão tanto sobre uma população de 3 milhões de libaneses como sobre a política libanesa, bem como a influência desses novos cidadãos nos resultados das eleições legislativas, pedra angular do edifício democrático libanês.
É preciso acrescentar a esse número 1 milhão de operários sírios que trabalham (em sua maioria clandestinamente) no Líbano e formam uma verdadeira "quinta-coluna" a serviço dos interesses estratégicos sírios no Líbano. Assim a vontade libanesa está irreversivelmente trancafiada.
2) A desnaturação do fundamento de nossas tradições democráticas: conforme o artigo 49 da Constituição libanesa, o Parlamento está proibido de reconduzir o presidente da República para um segundo mandato de seis anos.
Esse artigo é em si uma filosofia que diferencia o sistema libanês do sistema dos demais países vizinhos de caráter ditatorial e totalitário. Evitar a recondução do mandato significa assegurar a boa marcha da democracia, a renovação dos quadros da nação e evitar a perenidade das mesmas pessoas no poder, o que acarretaria, principalmente num país frágil como o Líbano, a instauração de um Estado policial e totalitário.
Ora, a Síria acaba de impor a modificação do artigo 49 com o objetivo de reconduzir o atual presidente para um novo mandato. Com essa decisão a Síria quis de um lado recompensar o presidente libanês que seguiu escrupulosamente os pedidos de Damasco e o encorajar a aprofundar sua fidelidade à Síria.
Por outro lado, a Síria procurou banalizar, desestabilizar e desacreditar a Constituição libanesa a fim de facilitar, no futuro, sua total modificação e levar o país a aceitar a fusão com a Síria. O terreno já foi preparado por todo um conjunto de tratados que enfeudaram totalmente o Líbano, segundo a vontade dos dirigentes sírios.
Para concluir, o que ocorre no Líbano é uma anexação rampante do país, diante da indiferença de um mundo atolado em problemas sociais, lutas étnicas e religiosas ou preocupado com certos interesses de caráter estratégico.
Isso não impede que o povo libanês permaneça vigilante e continue a lutar a seu modo. Assim, em 1992, 87% dos libaneses boicotaram as eleições legislativas cujo objetivo era o de homologar o fato consumado sírio e, recentemente, uma indignação política geral quase entravou a recondução do mandato do atual presidente, o que provocou a necessidade de uma forte intervenção do presidente sírio a fim de impor aos libaneses sua vontade.
Entretanto os libaneses guardam a fé e fundamentam suas esperanças no processo de paz do Oriente Médio. Este só poderá instaurar uma paz justa e duradoura na medida em que o direito dos Estados à soberania e o dos povos à autodeterminação sejam assegurados e garantidos.

Tradução de Lise Aron

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