São Paulo, terça-feira, 9 de janeiro de 1996
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Mitterrand combinou perfil nobre e socialismo

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

No início de 1981, uma biografia confeccionada como peça de propaganda para a campanha presidencial francesa intitulava-se "Certains l'appelent François" (Alguns o Chamam de François).
O objetivo era neutralizar a idéia de que François Mitterrand possuía de si mesmo uma idéia majestática e cerimoniosa, em nada condizente com a de um dirigente da esquerda.
O fato é que, entre os cerca de 30 assessores que levou para o Eliseu ao ser eleito, apenas dois o tratavam por você. Para os demais, ele era "Monsieur Mitterrand".
Ainda adolescente, gostava de ser respeitado como um príncipe herdeiro do trono da França, afirmou Catherine Nay, uma de suas muitas biógrafas. O jornalista sueco Chris Forsne, um confidente seu, afirmou que ele possuía o refinamento e o egocentrismo próprios a um nobre florentino.
Esse perfil aristocrático deu a Mitterrand um quê de impermeabilidade a seus múltiplos paradoxos biográficos.
Socialista, deixou de conceber o Estado como principal agente econômico e passou a privilegiar a eficiência própria ao setor privado. Nacionalista -e da pior espécie na juventude, ligado à extrema direita anti-semita no final dos anos 30 e início dos 40-, tornou-se um dos arquitetos de uma nova Europa, em que a França, por meio da união monetária, aceita implicitamente a hegemonia alemã.
Por fim, se nos anos 50 ele pertenceu a gabinetes que delegaram poder político às Forças Armadas durante as guerras na Indochina e na Argélia, nos anos 80 tornou-se um desconfiado crônico das razões corporativas da máquina de guerra.
Foi por isso, revelou recentemente um de seus ex-assessores, que não levou a sério relatórios que, em 1992, pediam a retomada dos testes nucleares no Pacífico.
As frases de Mitterrand demonstravam um apego por autores como Stendhal e Zola. Ele foi também um homem enigmático, maquiavélico. Encomendava monografias sobre o mesmo assunto para dois ou três assessores, com a recomendação de sigilo e sem adiantar suas intenções.
Nasceu em 26 de outubro de 1916 numa cidadezinha chamada Jarnac, localizada no sudoeste da França e não muito longe dos vinhedos que cercam Bordeaux.
Seu pai era funcionário da companhia local de estrada de ferro e depois se tornaria o presidente de uma inexpressiva associação de produtores de vinagre.
Eram ao todo oito irmãos e mais dois primos órfãos na mesma família. Todos educados segundo o mais rígido e conservador dos catolicismos. Forma-se em direito e depois em ciências políticas.
A Segunda Guerra eclode antes que ele complete 24 anos. É recrutado, ferido próximo à fronteira belga e feito prisioneiro dos alemães. Obtém êxito em sua terceira tentativa de fuga.
Ao fim do conflito, com 28 anos, torna-se secretário de Estado dos Veteranos de Guerra no primeiro governo provisório chefiado pelo general De Gaulle. Elege-se deputado pela primeira vez em 1946. Durante a Quarta República (1947-1959), ocupou por 13 vezes cadeiras ministeriais. Pertencia a um pequeno agrupamento político associado à SFIO (Seção Francesa da Internacional Operária), designação, na época, dos socialistas.
Os socialistas estiveram estreitamente ligados a momentos pouco gloriosos daquele agitado período. Foram os grandes responsáveis pelo naufrágio da França na aventura colonial da Argélia.
A tarefa estava em parte efetuada quando, em 1965, ele enfrenta De Gaulle em eleições impossíveis de serem vencidas. O alinhavamento prosseguiu até 1971.
Naquele ano, na cidade de Epinay-sur-Seine, fundou-se em congresso o novo PS, um mosaico de tendências que passou a disputar espaços à esquerda com o PCF.
Mitterrand desdobrou seu know-how tático: jogava damas com seu partido e xadrez com os comunistas. De certo modo, venceu nas duas frentes.
Em 1974, com a súbita morte do presidente George Pompidou, o processo sucessório é desencadeado. Mitterrand perdeu para Valéry Giscard d'Estaing por menos de um ponto percentual.
Seguem-se sete anos de oposição. A popularidade de Mitterrand oscila proporcionalmente à impopularidade de Giscard. Ele se prepara para as presidenciais de 1981, que seriam sua última chance de chegar ao poder.
Estuda com afinco economia e finanças, temas que nunca lhe foram familiares. Divide seu tempo entre seu apartamento de três andares e 166 m2 numa ruela do Quartier Latin e uma pequena fazenda no município de Latché, próximo ao centro geográfico da França.
Em 1981 chegam as novas eleições e ele derrota Giscard d'Estaing por menos de 400 mil votos.
Mitterrand, aos 64 anos, reencarna Luís 14 ao desencadear o chamado programa de 110 pontos, a seu ver essencial para colocar o país em posição vantajosa no início do século 21.
Um de seus axiomas: expandir o Estado para que ele controle o crédito e setores industriais capazes de gerar tecnologia de ponta. São nacionalizados pouco mais de 40 bancos ou grupos industriais.
Mas o modelo previdenciário de Estado paga um tributo à inflação e ao enfraquecimento da moeda. O franco é três vezes desvalorizado. O desemprego não cede.
Não tardam os critérios de "verdade orçamentária", com o fechamento de empresas deficitárias e a ruptura com o PCF, que retira seus ministros do governo.
Eleições legislativas de 1986. A esquerda se vê em minoria. Mitterrand é obrigado a nomear um adversário político, Jacques Chirac, para o posto de primeiro-ministro.
Faria o mesmo em 1993, ao nomear Edouard Balladur. A coreografia do poder modifica seu conteúdo. Mitterrand preserva certa autonomia só em questões de defesa e política externa.
Ele foi por vezes acusado de ter exercido o poder com o objetivo de "entrar para a história". As grandes obras que deixou antes do término de seu segundo mandato são uma prova estética desse desejo. Reformou o Museu do Louvre e construiu a ópera da Bastilha e a nova Biblioteca da França.
Mitterrand, por fim, não esteve em momento algum no miolo dos escândalos desencadeados por mecanismos ilícitos de financiamento eleitoral. O PS afundou eleitoralmente, mas os "affaires" passaram ao largo do Eliseu.

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