São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 1996 |
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Um conto de inverno francês
JACQUES RANCIÈRE
Na época de Platão, os filósofos mantinham a cabeça muito virada para o céu e, de vez em quando, caíam em poços. A cabeça dos nossos governantes está muito bem pregada nas telas que lhes indicam os índices do mês, as reações diárias do mercado e as previsões dos especialistas para curto, médio e longo prazo. Eles sabem exatamente o que os ventres devem sacrificar hoje para o amanhã e para os ventres de amanhã. Não precisam mais persuadir as massas ignorantes das vagas exigências do bem ou da justiça. É só mostrar aos homens do mundo as carências e os desejos que a necessidade rigorosamente calculada exige. Isto é, em suma, o que quer dizer a palavra "consensus". Ela parece exaltar as virtudes da discussão e da coordenação que permitem o acordo entre as partes concernidas. Vista de mais perto, a palavra significa exatamente o contrário: "consensus" quer dizer que os dados e as soluções dos problemas são tais que todos devem constatar que não há nada a discutir e que os governantes podem antecipar esta constatação que, sendo evidente, não precisa nem sequer ser constatada. Foi isso que o primeiro-ministro francês fez recentemente ao anunciar à população que dali para frente seria necessário, para suprir o déficit dos gastos sociais e equilibrar o sistema de aposentadorias, que se renunciasse a alguns ganhos sociais tradicionais e que os funcionários públicos trabalhassem mais tempo para ter direito à aposentadoria. Diante da greve geral dos transportes públicos e do pouco entusiasmo da população para se inflamar contra os "privilégios" dos ferroviários e dos motoristas de ônibus que os faziam andar a pé em pleno inverno, o partido da inteligência começou a questionar-se. Como uma reforma evidentemente necessária podia ser recusada pelos homens da necessidade? É porque, concluíram, a reforma não lhes foi bem explicada. Eles iriam tentá-lo. A tarefa é, contudo, estranha. Afinal, o que fazem ao longo do ano o poder e a mídia senão explicar à população que não há nada a fazer além do que fazem nossos governos? Como não perder a esperança nas virtudes dessa pedagogia? O problema é que explicar é uma ação tão estranha que tem uma aparência simples. Nós, dizem nossos governantes, somos racionais demais para sermos compreendidos pelo povo, que não o é. Como a cabeça inteligente se tornará suficientemente estúpida para ser compreendida algum dia pelo ventre inteligente? Como fazer entender aqueles que, por definição, não entendem? Alguns pensadores de elite acharam a receita, também platônica, a seu modo: entre a cabeça e o ventre, há o coração, e se se falar ao povo a linguagem do coração... Infelizmente, não existe nenhuma escola para ensinar o que o coração pode dizer nestes casos. Resta uma outra hipótese, que nenhum governante sério admitirá porque arruinaria as bases de sua fé: se a explicação não surte efeito nos ventres ignorantes é porque eles a compreenderam muito bem, mas não a julgam convincente, em suma porque não são ventres ignorantes, mas cabeças inteligentes. Esta hipótese, desastrosa para os governantes, fundamenta o que realmente deve ser chamado de política. Alguns continuam a confundir política com governar, embora ela seja o que não cessa de contrariá-lo. A política é o modo de se ocupar dos afazeres humanos que se fundamenta na pressuposição louca de que uma pessoa é tão inteligente quanto qualquer outra e de que há sempre no mínimo uma outra coisa a se fazer no lugar do que é feito. Isso era bom, dizem nossas elites, nos tempos de abundância. Não podemos nos dar ao luxo dessas extravagâncias. Aprendamos com nossas cabeças pensantes as leis da necessidade e constatemos pelos ventres estúpidos que se trata exatamente da necessidade. Aqui aparece o miolo do problema. À cabeça do legislador platônico reprovamos estar muito longe do ventre para poder governá-lo utilmente. A dos nossos governantes sofre o mal inverso: ela é incapaz de se distinguir dele. A inteligência governante, hoje, não passa da sabedoria do automatismo do grande ventre mundial da riqueza. A oposição entre o governante e os governados tornou-se, assim, a oposição entre o ventre ideal e os vulgares ventres empíricos. Este é talvez o último sentido da palavra "consensus": a cabeça que nos governa é apenas um ventre ideal. Não é preciso mais que uma cabeça, diziam antigamente os governos, à maneira militar. A palavra de ordem de nossos governantes agora é: não é preciso mais que um ventre. Daí a violência simbólica de conflitos como a da recente greve francesa. Alguns observadores a compararam às provas de força comandadas vitoriosamente por Ronald Reagan e Margaret Thatcher para destruir de uma vez por todas o poder das organizações trabalhistas. Os governos estão conduzindo uma batalha pelo monopólio do ventre, uma batalha para que se admita que o sistema de necessidades tem apenas um único centro e um único modo de funcionar. Isso passa ou isso acaba, dizem com prazer nossas elites, confrontadas com a má vontade das massas. Só que falta muito pouco para que isso acabe. Basta que os "ignorantes" percebam um único ponto: identificando-se com o governo do ventre, o governo da inteligência afastou-se do único privilégio aceito pela inteligência: o direito de se ocupar do futuro. Em vão nossos governos fazem com que seus especialistas forneçam previsões a longo prazo para justificar os sacrifícios que exigem hoje. Um só indício de que a bolsa está em alta e de que "os mercados reagiram bem" a estas medidas para o futuro é suficiente para instruir os "ignorantes", pois transferem este futuro para o cotidiano da especulação. É preciso apenas que os pequenos ventres obstinem-se, como fizeram os trabalhadores franceses do transporte, na defesa daquilo que os governantes chamam de "privilégios", para que a máquina emperre e, pouco a pouco, o jogo vire completamente. As cabeças pensantes se vêem então acusadas de ser apenas os órgãos do grande ventre anônimo da riqueza, enquanto os pequenos ventres ávidos se metem a falar como seres inteligentes e a exigir o direito de ocupar-se do futuro esquecido pelos nossos governantes. Essas loucuras, dizem os sábios, duram apenas um instante. Mas, de tempos em tempos, as sociedades reaprendem desse modo brusco duas ou três coisas inauditas: que a inteligência é a coisa mais bem partilhada no mundo e que a desigualdade só existe em razão da igualdade. Essas coisas inauditas são pura e simplesmente o que faz com que a política tenha um sentido. Tradução de LUCIANA ARTACHO PENNA LEIA Crítica do livro "Políticas da Escrita", de Jacques Rancière, que está sendo lançado no Brasil, à pág. 5-12 Texto Anterior: Conheça os 'Autores' Próximo Texto: LITERATURA; LANÇAMENTO; ARTE; PROMOÇÃO Índice |
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