São Paulo, segunda-feira, 15 de janeiro de 1996
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"Complô tchetcheno" ronda a Rússia

JAIME SPITZCOVSKY
DE PEQUIM

Um mistério ronda o Kremlin: existe um "complô tchetcheno", ou seja, forças infiltradas no governo russo e interessadas em manter acesa a chama da guerra que a Rússia trava contra os rebeldes separatistas da Tchetchênia?
A imprensa russa alinhou semana passada fatos que alimentam a tese da existência de uma "terceira força", que lucraria política e financeiramente com o sangrento conflito responsável pela morte de mais de 20 mil pessoas.
Guerrilheiros atravessam fronteiras, furam cercos e repetem ações mirabolantes em seis meses com esquemas idênticos, ministros subestimam avisos de iminente ataque, documentos secretos do governo russo chegam primeiro ao líder rebelde tchetcheno Djokhar Dudaiev e só depois ao presidente russo, Boris Ieltsin. A montagem do quebra-cabeças insinua a existência de um complô.
A Tchetchênia, região muçulmana encravada no sul da Rússia, enfrentou no século passado os conquistadores enviados por Moscou. Derrotada, submeteu-se aos domínios do Kremlin sem deixar de remoer um sentimento anti-russo e a vontade de deslanchar uma nova "guerra santa" contra os infiéis loiros e de olhos azuis.
A desintegração da URSS apareceu como a janela que permitiria aos nacionalistas tchetchenos abandonar a Rússia. Declararam independência em 1991. Moscou ensaiou uma invasão que acabou não ocorrendo.
Dudaiev, ex-piloto da Força Aérea soviética, dizia recuperar o orgulho nacional dessa população famosa por sua tradição guerreira. Para os inimigos, a Tchetchênia independente apenas facilitava o desenvolvimento do que seria outra antiga tradição local: o crime organizado.
Sob a bandeira de combate à máfia tchetchena e de preservação da integridade territorial da Rússia, Boris Ieltsin deslanchou em dezembro de 1994 uma operação militar que, prevista para durar algumas horas, se arrasta até hoje. O herdeiro do outrora poderoso Exército Vermelho não consegue esmagar a rebelião.
Não resta dúvida de que a Rússia não dispõe de Forças Armadas tão bem treinadas e equipadas como nos tempos da Guerra Fria. Mas as humilhações impostas em sequência pelos rebeldes levantam a tese da "terceira força".
Há basicamente dois setores interessados na manutenção do conflito. O primeiro, mais poderoso e próximo ao Kremlin, é o chamado complexo industrial-militar, filho da Guerra Fria e responsável pela produção de um arsenal que se preparava para eventualmente enfrentar os Estados Unidos.
Os EUA deixaram de ser inimigos, e os produtores russos de armas se viram numa crise profunda. Estimular a guerra na Tchetchênia representaria manter um mercado para sua produção e uma justificativa para sua existência.
Outro interessado na manutenção da guerra: o crime organizado. O caos atual permite aos grupos manter contrabando de armas, drogas e petróleo.
Analistas russos suspeitam que a chamada "terceira força" conte com representantes infiltrados no Kremlin. Na terça-feira passada, Arkadi Volski, um dos enviados de Ieltsin para negociar a paz na Tchetchênia, contou na TV fatos que alimentam desconfianças.
Volksi disse ter enviado ao premiê Viktor Tchernomirdin, depois das negociações de cessar-fogo, um documento sobre as discussões, sem cópias, selado e com o carimbo de "secreto e confidencial". O líder tchetcheno Dudaiev ficou sabendo do teor do texto.
Volksi continuou: enviou outro documento secreto, agora para Ieltsin, mas ele chegou à delegação tchetchena.
O presidente Ieltsin cobrou recentemente de seus ministros por que eles não fizeram nada para evitar o ataque rebelde contra o hospital em Kizliar, embora tenham recebido sinais da iniciativa duas semanas antes.
O ataque repetiu modelo empregado em junho passado, quando da tomada de um hospital em Budennovsk, sul da Rússia. O líder daquela ação, Chamil Basaiev, continua comandando guerrilheiros na Tchetchênia.
A imprensa russa também pergunta por que as forças russas de segurança não conseguem capturar Dudaiev e Basaiev. Os dois são ocasionalmente entrevistados em seus esconderijos por jornalistas vindos de Moscou.
Mais mistério: o grupo Lobo Solitário, envolvido na atual crise dos reféns, enfrentou tropas russas na batalha por Gudermes, a segunda cidade da Tchetchênia.
Depois de violentos combates, Moscou anunciou ter cercado a cidade e conseguido seu controle.
As centenas de guerrilheiros do Lobo Solitário, no entanto, abandonaram facilmente a cidade, apesar do cerco russo e das promessas de "aniquilar o inimigo".
As perguntas se acumulam. Enquanto isso, cresce a força da tese do complô. E se enfraquece a imagem de Boris Ieltsin, responsável pela mais desastrada ação militar na história recente da Rússia.

O jornalista JAIME SPITZCOVSKY foi correspondente em Moscou entre 1990 e 1994 e esteve na Tchetchênia em 1991.

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