São Paulo, quarta-feira, 17 de janeiro de 1996
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O PAS e o Conselho Regional de Medicina

BRAULIO LUNA FILHO; JAIR MARI

Não há evidência científica de que o PAS seja superior à política atual de saúde
BRAULIO LUNA FILHO e JAIR MARI
O Conselho Regional de Medicina (Cremesp) decidiu investir contra o Plano de Assistência à Saúde da Prefeitura de São Paulo, o PAS, pelas implicações éticas que envolveram a adoção do programa no início do ano. Os motivos que levaram essa entidade a manifestar-se publicamente contra o projeto serão apontados neste artigo.
A implantação do PAS está ocorrendo com base em crença -não há evidência científica de que o PAS seja superior à política atual de saúde. Essa avaliação, ora inexistente, deveria ser realizada por meio de um estudo de custo-benefício, para comparar os custos envolvidos e o impacto do programa nas condições de saúde da comunidade alvo. A universidade dispõe de recursos metodológicos que possibilitariam uma avaliação isenta e objetiva da possível eficácia e viabilidade do PAS.
Por exemplo: a região de Pirituba-Perus concentra uma população de 800 mil habitantes. Um plano de saúde, para merecer a chancela científica, deve se fundamentar em estudos prévios das condições de vida, levantamento epidemiológico e nosológico das afecções daquela região. Em seguida deveriam ser definidas as prioridades e o ritmo de implantação do programa.
Todo estudo original e abrangente, do ponto de vista populacional, inicia-se com um modelo de menor complexidade capaz de antecipar dificuldades e problemas passíveis de serem corrigidos ou evitados. O PAS está sendo testado em uma população muito maior do que muitas capitais do Brasil e de outros países, na mais completa ausência de subsídios científicos indispensáveis para avaliar e justificar sua adoção.
Uma política de saúde deve ter um caráter estável e ser compatível com as necessidades da população. O PAS pretende transferir R$ 10 mensais por habitante para que uma cooperativa médica gerencie a alocação desses recursos na saúde da comunidade. Ponto positivo do PAS é que o paciente teria direito ao atendimento em local predeterminado.
Contudo, não há nenhuma avaliação de como esse sistema vai funcionar na prática. Ora, se o sistema não der lucro para a cooperativa, como os médicos vão agir para cortar custos? Quais os critérios de prioridades que vão ser adotados? Com que liberdade os médicos vão solicitar os exames laboratoriais necessários? Como essas cooperativas se relacionariam na hierarquização e distribuição de suas funções? Como solucionariam os conflitos emanados dos atos médicos mais onerosos e pouco lucrativos, como os programas contra Aids, os tratamentos contra câncer etc?
Essas perguntas não foram respondidas pelo atual secretário da Saúde. Pode-se inferir que a intenção da prefeitura é estruturar duas ou três vitrinas que poderiam beneficiar, na melhor das hipóteses, 10% da população da cidade.
Coloca-se tal vitrina no horário nobre da TV e tem-se a solução dos problemas de saúde da população? Qual a garantia de que o sistema seria efetivamente estendido a toda população após as eleições e de que um outro partido manteria o PAS? Quem responderia pelo ônus de haver desativado partes saudáveis do sistema atual? As indagações são claras: a preocupação do Cremesp é ética e tem base científica; a preocupação da prefeitura é apenas política.
A implantação do PAS ocorre após o sequestro de recursos financeiros destinados à saúde do município nos últimos dois anos. A prefeitura cortou investimentos da saúde para fazer a poupança do PAS. Quantas pessoas podem ter perdido a vida por essa decisão? Quantas deixaram de ser atendidas para se fazer o fundo de implantação do PAS?
Tudo indica que a sucatagem da saúde no município foi intencional e deliberada para que o PAS pudesse emergir como solução milagrosa. A audácia e a irresponsabilidade da prefeitura com a saúde da população exigiu que o Cremesp assumisse a delicada posição de denunciar o que considerou infração ética do exercício da medicina.
A promoção de uma nova política de saúde deveria preservar as unidades que funcionam adequadamente. Por exemplo, toda a equipe de saúde mental do hospital-dia de Pirituba-Perus não aderiu ao PAS, acarretando o fechamento da unidade. O hospital-dia fornecia cobertura a cerca de 40 pacientes psiquiátricos graves no âmbito extra-hospitalar, área de extrema carência de atendimento na cidade.
O trabalho desenvolvido pela equipe multidisciplinar anterior funcionava como modelo de atenção à saúde mental. Ele foi desmontado, e uma possível reestruturação do hospital levará meses, sem garantia de atingir a qualidade anterior. A população perdeu um dos poucos serviços de excelência na área de assistência psiquiátrica do município.
A implementação de uma política de saúde exige diálogo e co-participação das categorias envolvidas. Chama a atenção que o projeto do PAS não tenha sido divulgado, a não ser de forma genérica e propagandista. A comunidade científica e as categorias envolvidas na execução do programa não foram chamadas para opinar. Como poderiam as entidades médicas acatar um projeto, que não lhes foi apresentado, sem conhecer o seu conteúdo?
Não fica claro como o PAS vai se articular com o Sistema Único de Saúde. Pode-se concluir, do que foi exposto, que a implantação do PAS atende mais ao calendário político do prefeito do que às reais necessidades de se testar um programa de saúde, o que seria meritório e poderia servir de base para uma reforma do sistema assistencial do país.
A prefeitura perde assim a oportunidade de compartilhar sua idéia com a comunidade científica e com aqueles que fariam o PAS chegar à comunidade -os médicos, os profissionais de saúde e suas entidades representativas.

BRAULIO LUNA FILHO, 42, pós-doutorado em cardiologia pela Universidade de Harvard (EUA), é conselheiro do Cremesp (Conselho Regional de Medicina/São Paulo).

JAIR MARI, 42, é professor livre-docente do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Universidade Federal de São Paulo e conselheiro do Cremesp.

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