São Paulo, quarta-feira, 17 de janeiro de 1996
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Americanofobia sob encomenda

GUIDO DE RESENDE SOUSA

Em recente artigo publicado na Folha (12/12/95), tive a oportunidade de rebater alguns absurdos divulgados por membro do Conselho Editorial deste jornal, o professor Cerqueira Leite, sobre o Sivam. Como profissional com extensa experiência em controle do espaço aéreo e na própria concepção e desenvolvimento do Projeto Sivam, não posso calar-me ante as "verdades" apresentadas por aquele articulista em assuntos técnicos que não são parte de seu universo de conhecimentos.
Parodiando colega meu, com maior experiência que a minha própria, diria que pior que uma "meia verdade" é uma "meia mentira".
Afinal, dos vários desatinos técnicos cometidos em artigo intitulado 'Uma alternativa para o Sivam' (Folha, 10/1/96), sobressaem referências ao OTH (Over the Horizon Radar). O interessante é que esse tipo de radar foi mencionado pela primeira vez, fora dos meios aeronáuticos no Brasil, por executivo da empresa francesa Thomson CSF, em depoimento no Congresso, na esteira das discussões que se seguiram à seleção da americana Raytheon como principal fornecedora para o programa.
Importante é que as "excelências" desse equipamento só foram trazidas à luz após o encerramento do processo de seleção, isto é, depois do "jogo feito"; o tal OTH poderia ser proposto por qualquer dos concorrentes, e não o foi por nenhum. Trata-se de produto típico da Guerra Fria, desenvolvido a partir da década de 60, e cujo princípio de funcionamento já era conhecido nos anos 30; é essa a grande novidade tecnológica que o professor quer nos vender.
Por falta de melhor aplicação, esses excedentes de guerra têm sido usados pelos americanos para detectar aeronaves do narcotráfico, sem muito sucesso face a suas limitações operacionais, como imprecisão e baixa confiabilidade nas regiões equatoriais.
Foram detectadas pela FAB algumas centenas de aviões na Amazônia, não com o OTH de Porto Rico, mas com um radar móvel 3D italiano, instalado em Boa Vista, adquirido há vários anos e de performance inferior aos equivalentes propostos para o Sivam, que, na visão distorcida do leigo, seriam "insatisfatórios" para vigilância aérea.
De onde teria o físico concluído que um OTH poderia ser desenvolvido no Brasil por US$ 500 mil? Aqui foram gastos US$ 4 milhões no projeto de um simples radar meteorológico, que até hoje não passou do protótipo após mais de 15 anos de desenvolvimento; é esse um dos radares que o professor diz que produzimos e exportamos, até para os EUA! Como ele é notoriamente americanófobo, seria bom consultar-se com os franceses sobre os custos de desenvolvimento do OTH. Afinal, fez seu doutoramento na França e, pelo menos, deve falar bem o idioma da Sorbonne.
Não existe uma indústria de radares no Brasil. Os únicos radares vendidos por empresas nacionais à Aeronáutica eram modelos Thomson CSF, apenas montados no país. Aliás, o governo tem incentivado, e muito, a indústria nacional; mas seus preços não são competitivos, ficando ela limitada ao mercado interno; as montadoras dos radares franceses não venderam nenhum fora do país. As empresas vão mal, os empresários vão muito bem!
Ridícula a menção à exportação de VOR brasileiro para os EUA; ouviu-se só a metade da história e divulgou-se "meia mentira". Em 1990, o então major-brigadeiro Ivan Frota, hoje membro ativo do "lobby anti-Sivam", era diretor de proteção ao vôo e decidiu adquirir alguns VOR e DME; consultada a Tecnasa, fabricante nacional, seus preços foram considerados excessivos e o hoje ultranacionalista brigadeiro optou pela compra nos EUA; logo onde!
Já que o que encarecia o produto nacional eram os impostos brasileiros, a empresa exportou os VOR e DME para uma sua subsidiária na terra do Tio Sam e reexportou-os para a Aeronáutica. Grande feito da indústria nacional!
Como já ficou demonstrado pelo uso dos radares móveis 3D em Boa Vista e pela utilização intensiva de radares aeroembarcados pelas mais eficazes forças aéreas do mundo, a americana e a israelense, essa é a melhor combinação para detecção de aviões a baixa altura; o professor pode afirmar o contrário, mas não mudará a realidade do fato técnico.
Para finalizar, vamos aos outros aspectos da questão, os quais conheço muito melhor que meu ex-mestre.
A primeira empresa a tomar conhecimento do Sivam não foi a Raytheon, mas precisamente a Thomson em 1990, porque participava do projeto de implantação do Sistema de Controle do Espaço Aéreo, do qual se originou o da Amazônia. Antes da referida apresentação da empresa americana a parlamentares brasileiros, em 1993, a francesa já vinha apresentando suas concepções sobre o projeto a autoridades aeronáuticas; eu mesmo, como presidente da Ciscea (Comissão de Implantação do Sistema de Controle do Espaço Aéreo), tive a oportunidade de ouvir brilhante explanação dessa grande empresa sobre o Sivam em 1991, quando em missão oficial a Paris.
Vamos acabar com essa balela, "meia mentira", de que a concepção do projeto teria sido elaborada pela Esca ou alguma empresa estrangeira; sua concepção e a documentação da configuração são obra do governo brasileiro.
Pior que errar é insistir no erro. Antes de afirmar, com base apenas na leitura do corpo principal do contrato 01/95 -governo/Raytheon, que o atual ou um futuro financiamento do Eximbank excluiria a indústria nacional, Cerqueira Leite deveria ser mais investigador, como devem ser os cientistas, e procurar mais informações nos anexos, que são parte do contrato. Lá estão, no anexo 14, tabela 4-1, listados os fornecimentos de equipamentos de empresas brasileiras como Embraer, Tecnasa e Ericsson do Brasil, além de serviços, inclusive os de obras civis, listados em outros documentos, tudo com financiamento externo, do Eximbank, da própria Raytheon e outros.
"Mon cher professeur"! Vamos tratar daquilo de que entendemos!

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