São Paulo, quinta-feira, 18 de janeiro de 1996
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Futebol e gíria revelam amor e ódio de vizinhos

ALBERTO HELENA JR.
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"Mete bronca nesse otário, malandro!" Imagine tais palavras saindo da boca de um mulato inzoneiro, com ganas de matar o gringo cheio de picardia que, além de meter a pelota no meio de suas gambetas, nessa cancha pesada, ainda por cima quer engrupir todo mundo, cantando nossas minas.
Nada mais brasileiro, certo? Pode ser: mas, tirando-se o mulato inzoneiro que só viveu nos versos de Ary Barroso, o resto do papo é a mais pura Buenos Aires. Pelo menos, a Buenos Aires que se iluminava nas noites boêmias da primeira metade do século; engalanava-se nas tardes turfísticas e ardia no estádio da Bombonera num inesquecível River e Boca.
Otário, malandro, picardia, pelota, engrupir, cancha, mina e mais um alentado catatau de expressões populares que se incorporaram ao nosso linguajar são o mais casto lunfardo portenho, a gíria dos malandrinhos de Buenos Aires.
Pois era assim que odiávamos os argentinos nos anos 30, 40 e 50: amando e invejando sua maneira de se expressar, fosse na maneira de vestir-se à inglesa, bigodinho aparado, gomalina nos cabelos; fosse por intermédio do nostálgico tango ou da maliciosa milonga, posto que Libertad Lamarque e o imortal Carlito Gardel, El Moroco del Abasto, eram tão cultuados por aqui como Carmen Miranda e Chico Alves o eram por lá.
Mas era no futebol que as diferenças atingiam o paroxismo, nessa dramática combinação de inveja e auto-estima. Nosso geniais negros e mulatos, que faziam da bola um objeto de arte, eram chamados por eles de macaquitos. Macacos amestrados, malabaristas sem garra nem senso de união, que praticavam magia nos campos, mas não competiam. E o pior é que eles ganhavam sempre.
A não ser na famigerada decisão do sul-americano de 39, no campo do Vasco, quando, depois de monumental quebra-pau entre os jogadores, por causa de um pênalti marcado a nosso favor, a Argentina abandonou o campo. O juiz, o brasileiro Tijolo, não teve dúvidas: com o gol escancarado, mandou Perácio cobrar o pênalti assinalado. E o Brasil pôde comemorar uma das raras vitórias sobre os gringos, com o mesmo acanhamento com que, recentemente, celebrou o gol de mão de Túlio.
Mas, lá no fundo, os argentinos rendiam-se à arte brasileira, e um bravo contingente de ídolos antecederam o nosso modesto Silas, hoje reverenciado em Almagro: de Leônidas da Silva a Delém, de Dino Sani a Paulo Valentim.
Aqui, recebemos de braços abertos também um contingente de craques argentinos, a começar por don António Sastre, El Maestro, que chegou ao São Paulo já veterano, em 42, e teve de amargar dura adaptação. Diziam que o São Paulo comprara um bonde, até que a sutileza de seu futebol e a inteligência de suas manobras o transformassem num mito.
Já sem tanto cartaz, em 48, desembarcou o jovem goleiro José Poy, vindo de Rosário, para fechar o gol tricolor durante quase duas décadas. Mais tarde, o desconhecido Albella, do Banfield, que faria furor na conquista do título de 53, batizado pelo locutor Geraldo José de Almeida como "El Atómico", pela fúria com que devastava as redes adversárias.
Nessa época já brilhava no Parque Antártica outro argentino: um centromédio clássico, na linha direta de Nestor "Pipo" Rossi, Luís Villa, um perfeito cavalheiro no trato com o adversário e com a bola, e dois anos mais tarde, Negri haveria de comandar o Santos na conquista do título paulista que prenunciava a era Pelé. O mesmo Santos que receberia, duas décadas depois, um dos mais completos arqueiros do mundo: Cejas. E um dos zagueiros mais estilistas da história: Ramos Delgado.
O esvoaçante e loiro Doval haveria de ganhar um nicho na galeria dos imortais rubro-negros, nos 70, onde se reserva um espaço para Mancuso, de breve e gloriosa passagem pelo Palmeiras.
Já não há mais ódio, nem inveja, apenas respeito. Afinal, não há supremacia.

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