São Paulo, sexta-feira, 19 de janeiro de 1996
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'Quando a Noite Cai' é obra de exorcismo

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Filme: Quando a Noite Cai
Produção: Canadá, 1994
Diretora: Patricia Rozema
Elenco: Pascale Bussières e Rachel Crawford
Estréia: hoje, no Espaço Unibanco de Cinema sala 2, Lumiére 1 e Olido 2

Curiosa figura, a canadense Patricia Rozema (leia-se Rôuzima). Já tinha 16 anos quando foi ao cinema pela primeira vez. E o que viu não era exatamente uma obra-prima: "O Exorcista". Cada um tem o "Bambi" que merece. O cinema entrou tarde na vida de Rozema, 36, por razões tão religiosas quanto as discutidas em "O Exorcista". Em seu lar calvinista, filme era coisa do demônio.
Sua primeira paixão cinematográfica foi outro atormentado pelo protestantismo, Ingmar Bergman, e seu último filme, "Quando a Noite Cai" (When Night is Falling), pode ser visto como um ato de exorcismo. O demônio, no caso, é a educação religiosa sob a qual Rozema viveu pouco menos que a metade de sua vida.
Como no primeiro filme dela lançado aqui, "O Segredo do Quarto Branco" (The White Room), duas personagens femininas se cruzam e se fundem, chegando agora às raias da conjunção carnal. Quando a noite cai, Camille (Pascale Bussières), ilibada professora de um colégio protestante, quase noiva de um pastor, transforma-se numa "belle de jour" (perdão, "de nuit") e cai nos braços de uma artista de circo (Rachel Crawford), por sinal bem mais bonita e atraente do que ela.
Como o casal de "O Turista Acidental", Camille se aproxima de sua partner graças a um cachorro. Só que Bob, o cachorro de Camille, não vai para um canil mas para debaixo da terra, deixando um vácuo afetivo na vida de sua dona, preenchido pela lésbica circense.
O local onde as duas se encontram pela primeira vez não podia ser mais apropriado para um interlúdio gay: uma lavanderia automática. A de Stephen Frears era bem mais vistosa, para dizer o mínimo.
A liberação dos desejos, sobretudo os proibidos, é o tema mais realçado por Rozema, que acabou fazendo um corolário feminino e sensualista de "O Padre" (Priest), de Antonia Bird, livre do fantasma da Aids.
A única desgraça de "Quando a Noite Cai" é a morte do cachorro, ainda assim redimida na última tomada do filme, numa das mais deslavadas concessões que a cineasta canadense já fez ao realismo mágico. Nem Lassie mereceu tão catártica deferência.
Chegada a devaneios visuais, contrapontos simbólicos (as imagens recorrentes de duas gêmeas se exercitando num trapézio são muito bonitas mas soam, afinal, gratuitas), citações e homenagens (Hitchcock, Bergman, Wenders) e também a fusões de elementos não humanos (colégio e circo, água e ar, preto e branco, religião e arte, luz e sombras), Rozema parece ter algumas das ambições de Atom Egoyan, mas não a mesma maturidade artística.
Suas fantasias femininas, superficialmente ousadas, não resistem às tentações do pernosticismo. Fazer filmes estranhos não chega a ser um mérito dos mais nobres.

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