São Paulo, sábado, 20 de janeiro de 1996
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Verbo é protagonista e vítima em 'Mary Stuart'

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Cortada, retalhada que esteja, exige saudação uma peça como "Mary Stuart". A tensão constante, as palavras cortantes, as personagens edificadas com complexidade, o que não falta é prazer, por assim dizer, literário, dramatúrgico. É o verbo o protagonista, qualquer a montagem.
Verbo que ganha crueza, que perde todo e qualquer artifício, que perde as rendas e drapejos que os românticos tanto questionavam, na tradução de Marcos Renaux e Marilene Felinto -com base na tradução anterior de Stephen Spender, para o inglês.
A comparação cena a cena com a tradução de Manuel Bandeira, para o original de Schiller, não deixa dúvida quanto ao mérito do novo texto. Mas os cortes poderiam ter sido realizados de forma diversa. Nada, em princípio, contra a redução de um texto para o palco. Pode ganhar ritmo, ganhar proximidade e atenção, ao realçar facetas mais presentes.
O problema é que "Mary Stuart" foi reduzida de uma forma que atingiu o texto, não na temática, não externa e superficialmente, mas na própria condução das cenas. É o equívoco de enxugar a peça verso a verso.
Um exemplo: o nó dramático, o confronto das rainhas, Elizabeth, a puritana, da Inglaterra, e Mary, a devassa, da Escócia. Foram suprimidas os trechos, ao final da cena, em que a intervenção de um terceiro personagem acentua o conflito. E a cena -a peça- perde fôlego no auge. Como este, há exemplos em cada cena.
A passagem revela outra das várias insuficiências da montagem. Excessivamente concentrada na piedade católica de Mary (Renata Sorrah), a encenação deixa de lado a imagem invertida da piedade -a sensualidade. Mary, no espetáculo, é a devassa mais carola já vista no palco. O envolvimento com o jovem Mortimer -o personagem romântico, exaltado por excelência- é de uma castidade e de uma ausência de paixão frustrantes.
O catolicismo de Mary -que ganha um oratório de proporções gigantescas- é reprimido. Revela maior pudor que Elizabeth, que seria, ela sim, a imagem do recato. "Quero tratá-la (Mary) do começo ao fim como uma criatura de instintos naturais", escreveu Schiller a Goethe. "O seu destino é sentir e desencadear em torno de si paixões violentas."
Em particular, sobre o jovem Mortimer. Mas Cláudio Fontana, ainda que tenha uma bela cena de revelação católica, não relaciona a religião ao sexo, o que frustra todo um caminho da peça.
A sensualidade, se existe, está na protestante, despótica Elizabeth de Xuxa Lopes, que ao menos apresenta lascívia -para usar uma palavra da tradução- pelo poder. Mas não estava bem Xuxa Lopes na estréia, ela que vem de uma bela atuação anterior.

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