São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 1996
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Cela percorre labirintos da intolerância

SISSA JACOBY
ESPECIAL PARA A FOLHA

Badajoz, Espanha, 1986: Diego e Dolores se beijam e trocam carícias em um bar. Incomodado, um homem se aproxima e recrimina o casal de namorados. A resposta de Diego é rápida: "Com minha noiva faço o que meus ovos pedem". Esta resposta intempestiva acabaria lhe custando muito mais do que os primeiros dias de prisão, o processo e a pena final de cinco meses. Acabaria lhe custando a vida.
O incomodado era um juiz, para quem a atitude de Diego foi tomada como "comportamento inadequado e efusões eróticas", acrescidos de "falta de respeito para com a autoridade". Diego não superou os traumas da prisão e do processo: abusos, desmandos, humilhações e arbitrariedades de todo tipo. Mesmo depois de saber que não precisaria cumprir a pena, por ser primário, não acreditou, e acabou se enforcando, no quintal de sua casa.
Este é o fato verídico por trás da ficção de Camilo José Cela, em seu romance "O Assassinato do Perdedor". Mateo Ruecas e Soledad, são os correspondentes ficcionais de Diego e Dolores. A figura do magistrado é propositalmente múltipla, tanto faz que o narrador o chame dr. Cosme, Constâncio, Alfredo, Ladislao ou Abel. O nome não conta, quando se sabe que a intolerância e o autoritarismo podem ter muitas faces.
Primeiro romance escrito depois do recebimento do Prêmio Nobel de Literatura em 89, "O Assassinato do Perdedor" (1994) insere-se na linha experimental trilhada por Cela desde "San Camilo, 1936" (1969), mantendo alguns pontos comuns com seu romance de estréia "A Família de Pascual Duarte" (1942) -Mateo e Pascual são duas vítimas de contextos distintos- e também com "A Colméia" (1951), na convergência de múltiplas misérias cotidianas.
A trama, basicamente discursiva -não há organização da ação em um enredo estruturado-, é tecida a partir de uma multiplicidade de vozes, em histórias fragmentadas, referidas em relatos e diálogos, sem privilegiar espaço ou tempo.
Num ritmo textual vertiginoso, figuras imaginárias, históricas e lendárias intervêm, aparecendo e desaparecendo, para retornar adiante, numa girândola contínua e crescente de motivos que se alternam e se repetem.
Em um desfile fantasmagórico, personagens e situações atreladas ao sexo, ao sórdido, ao insólito, cumprem uma espécie de ritual celiano, no qual o sem-sentido, muitas vezes apenas em aparência, e o humor negro, grotesco e desapiedado, expõem mecanismos universais de abuso de poder, injustiça e crueldades. Tudo isso dentro daquele espírito irônico, debochado e picante, próprio do escritor, que lhe permite transitar pelo sexual e o escatológico com natural desenvoltura e irreverência.
Na circularidade desse universo, flutuam tanto a instância narrativa quanto a autoria textual, a partir do deslocamento da narração para personagens, num vaivém que pode, a princípio, desorientar o leitor, e de alusões, propositalmente divergentes, que atribuem o texto ora a um autor ora a uma autora. Tudo é posto sob suspeita, até mesmo o título do livro, que flutua, também, entre mais de 30 possibilidades, cogitadas espaçadamente ao longo do romance.
O discurso flui, articulado em um bloco único, que contribui para a sensação de velocidade da narrativa, causada no leitor. Ao final, na "Advertência", e a exemplo do que ocorre em "A Família de Pascual Duarte" e "Mazurca Para Dois Mortos", uma carta encerra o livro, resumindo a história de Mateo Ruecas.
É interessante observar como, manejando técnicas semelhantes àquelas utilizadas em "A Colméia", Cela consegue um resultado oposto. Ali, a multiplicidade de vozes, e entrecruzamento de fragmentos de vidas e o recurso da repetição serviram para plasmar um mundo inerte, estático. Aqui, a inversão é total. O leitor sente-se no centro de uma verdadeira roda viva, de um desfile frenético, que desvela intolerâncias e baixezas seculares, apenas reeditadas no ritmo louco de novos tempos.
Referências de espaço e tempo multiplicam-se no emaranhado de cenas e diálogos os mais díspares: uma mulata que propõe sexo oral a um bispo num drive-in da Flórida; oito membros de uma família mortos a machadadas, na Colômbia; a Aids, mencionada no monólogo de um cavaleiro há, pelo menos, 200 anos.
Nesse mundo surreal em que vivem e morrem os Mateo Ruecas, a razão é uma instância ética, o mais das vezes, duvidosa. Por trás do gesto do enforcado insinua-se o empurrão de um juiz, que se escandaliza com beijos entre namorados, do carrasco detentor de um poder ilimitado, que tem "alto conceito do princípio de autoridade". A contrapartida pode ser tanto mais patética, como um caso de que se tem notícia na pág. 97: "Adrián Ortega (...) apareceu morto a punhaladas num palheiro; deram-lhe pelo menos 30 golpes; o juiz, acreditando que fosse obra das corujas, pôs uma pedra no assunto. -Para que perder tempo se é claro que foram as corujas?".
A matéria de Camilo José Cela continua sendo a mesma que o consagrou, na prosa, aos 26 anos: os perdedores, vítimas das mais variadas formas de intolerância e autoritarismo. Hoje, aos 79 anos, quando sua obra completa beira os cem títulos e ultrapassa os 30 tomos, o leitor não encontrará em "O Assassinato do Perdedor" o mesmo Cela de "A Família de Pascual Duarte" ou de "A Colméia". Seu penúltimo romance aproxima-se muito mais de "Ofício de Tinieblas" (1973) ou "Cristo Versus Arizona" (1988), ainda não traduzidos no Brasil. Mas para o leitor exigente, que busca algo mais do que uma história simples, com princípio, meio e fim, Don Camilo continua surpreendendo e fazendo pensar. Surpreender e instigar, em temos de mesmice e obviedades, podem ser ingredientes definidores como opção de leitura.

A OBRA
O Assassinato do Perdedor, de Camilo José Cela. Tradução de Maria D. Alexandre. Bertrand Brasil (av. Rio Branco, 99, CEP 20040-004, Rio de Janeiro, tel. 021/263-2082). 254 pág. R$ 23,00

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