São Paulo, sábado, 27 de janeiro de 1996
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Direito brasileiro vetaria as famílias de Mitterand

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Pareceu-me necessário esperar alguns dias desde a morte de François Mitterand, o socialista que cumpriu o mais longo mandato como presidente da República Francesa, para as considerações que estou fazendo hoje.
Dei um tempo para que as histórias sobre as duas famílias de Mitterand preenchessem o noticiário. Posso pois, tratar do assunto, sob a ótica legal. Tomo por paradigma os usos e costumes brasileiros e o farto noticiário que precedeu a eleição de Bill Clinton, nos Estados Unidos.
No Brasil, o adultério é crime. Sim, sujeito a pena de prisão de 15 dias a 6 meses, prevista pelo artigo 240 do Código Penal. Claro que a cominação de pena detentiva não tem impedido -como no caso francês- homens públicos de terem filhos fora do lar conjugal.
Talvez haja mulheres ocupantes de cargos públicos com filhos não gerados por seus maridos, embora se mantenham legalmente casadas.
Nos Estados Unidos têm sido comum, candidatos renunciarem à disputa de cargos eletivos, ante a reação do público, quando revelado que haviam sido infiéis a suas mulheres.
Será um caso de severidade moral americana, contraposta a maus costumes franceses e brasileiros? Penso que não. Muitos ficaram chocados, ou alegaram desaprovação. Contudo, a manutenção de duas famílias, ambas em clima de respeitabilidade e recato, encontra aceitação tanto entre pessoas de nível econômico, quanto entre os pobres.
À distância, o moralismo da sociedade americana moderna parece sugerir uma boa dose de hipocrisia, ante a pluralidade de histórias conhecidas a respeito de figuras públicas, no campo da política, da religião, das artes e dos esportes. No farisaísmo, a conduta irregular só encontra reprovação séria quando escapa da discreção dos personagens principais e se torna pública, embora, antes, fosse do conhecimento de muitos.
No Brasil, só há processo por adultério se houver representação escrita, formulada pela vítima, ou seja, o outro cônjuge. Trata-se de solução muito sábia, de respeito à vontade do interessado.
Quando o presidente Mitterand teve uma filha fora do casamento, a situação foi diversa. Pôs sob análise efeitos sociais e não jurídicos relacionados com sua condição de primeiro mandatário da nação e, assim, de exemplo vivo e constante para sua gente. Projetou efeitos diversos dos que envolvem o homem comum.
Tenho opinião firme no sentido de que a criminalização do adultério é um erro, que atenta contra a liberdade individual, sem nenhuma vantagem, repressiva ou preventiva, para a sociedade. Tanto que nem sequer é aplicada, nos pouquíssimos casos que foram levados a juízo.
No meu entender gera efeitos civis, no campo do direito de família, mas não é crime.
A questão também pode ser vista sob a ótica do filho. Até poucos anos atrás o filho resultante de adultério não podia ser reconhecido. O registro em nome de seus pais de sangue era proibido. Hoje a Constituição brasileira impede qualquer distinção entre filhos, dentro e fora do casamento.
A lei francesa não tem a mesma plenitude, mas permite o reconhecimento dos filhos havidos fora do matrimônio. Na relação entre pais e filhos vivos, o direito encontrou apoio no exame de ácido desoxirribonucléico (DNA). A filha de Mitterand já era reconhecida na intimidade, pois as duas famílias sabiam uma da outra, mas o reconhecimento público aconteceu em 1994.
O tema, sob esse ponto de vista, escapa da área do direito e ingressa na avaliação moral, em que cada um observa seus próprios valores, sem que os demais tenham direito de interferir. A conduta íntima de pessoas adultas e capazes não é da conta de ninguém.

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