São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 1996
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Fragmentos da história de uma cidade

VALÉRIA CÁSSIA DOS SANTOS; ROBERTO NOVELLI FIALHO

VALÉRIA CÁSSIA DOS SANTOS e ROBERTO NOVELLI FIALHO
A cidade de São Paulo, segundo o historiador Benedito Lima de Toledo, é um "palimpsesto -um imenso pergaminho cuja escrita é raspada de tempos em tempos, para receber outra nova, de qualidade inferior, no geral".
É difícil discordar da afirmação. Vítima do seu progresso, São Paulo não pára. Nos últimos cem anos, a cidade de feições coloniais, com suas construções de barro, se transformou na cidade de tijolos, que depois se tornou a cidade dos edifícios de concreto.
Hoje, aos 442 anos, os primeiros arranha-céus vão sendo substituídos por edifícios mais altos; o concreto vai cedendo lugar ao aço, e este cederá seu lugar a novas tecnologias. Os pedestres foram substituídos pelos automóveis. Os rios tiveram seus traçados alterados e sofremos com as enchentes.
A população aumenta e os serviços públicos não conseguem acompanhar seu crescimento. A descontinuidade das administrações públicas e a velocidade das mudanças impedem um desenvolvimento planejado. A velocidade é tamanha que duas gerações não chegam a compartilhar de uma mesma paisagem. Porém, páginas dessa história resistem ao tempo em suas ruas e edifícios.
Da promissora cidade dos barões do café e dos primeiros industriais, restaram alguns casarões na av. Paulista. A São Paulo fabril, da época em que começava a se desenvolver, podemos encontrar nos armazéns da Barra Funda e av. do Estado e nas antigas vilas operárias e galpões da Mooca. O início da verticalização está presente nos prédios do centro. O movimento moderno também deixou suas marcas nos edifícios de Rino Levi, Flávio de Carvalho, Villanova Artigas e Oscar Niemeyer.
Em Higienópolis, há edifícios residenciais de uma época em que espaço não era problema. A bonita perspectiva da av. São João em direção à Barra Funda se perdeu com o Minhocão. As famílias que ocupavam os edifícios partiram, a região se deteriorou e hoje podemos ver o que restou da ornamentação das fachadas entristecidas com a fuligem dos automóveis.
A cidade perdeu, com seu crescimento não-planejado, espaços belíssimos como o Jardim do Anhangabaú e o Belvedere do Parque Trianon. Ganhou o edifício do Masp, de Lina Bo Bardi. Os edifícios envidraçados da Paulista revelam a transformação da cidade em grande metrópole.
São fragmentos de uma história urbana, pequenos capítulos de uma trajetória da qual também fazemos parte. Massimo Canevacci, crítico italiano, escreveu que, para um estrangeiro, a melhor maneira de conhecer uma cidade é se perdendo nela, andando sem destino programado, deixando-se levar pelos caminhos que ela revela.
Talvez para nós, esse perder-se significa redescobrir passagens de nossa história, descobrir espaços e edifícios que não conseguimos ver no ritmo acelerado do trânsito e do trabalho. Talvez seja a maneira de encontrarmos pequenos pedaços de nossa história, associando nossas lembranças aos locais que para elas serviram de cenário, criando uma memória pessoal da cidade.
São Paulo ainda sofrerá mudanças. Esperamos que mais planejadas e preocupadas com o bem-estar de sua população e que os interesses de seus futuros governantes sejam sempre direcionados a transformá-la numa cidade mais justa e digna. E, sobretudo, que sua memória seja preservada, porque a história não se resume ao conhecimento do passado e acúmulo de lembranças. É por meio de seu conhecimento que podemos aprender, poder público e cidadãos, a construir e vivenciar um ambiente urbano melhor.

VALÉRIA CÁSSIA DOS SANTOS, 25, e ROBERTO NOVELLI FIALHO, 32, são arquitetos e sócio-diretores da Nave Arquitetura e Serviços S/C Ltda.

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