São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 1996
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O homem da câmera-limite

CARLOS ADRIANO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na União Soviética dos anos 20/30, um homem com uma câmera planejou produzir uma nova imagem para uma nova sociedade. Era Dziga Vertov, fundador da vital vanguarda soviética.
Cronista heróico da Revolução de Outubro (época fértil às artes), Dziga Vertov nasceu Denis Arkadievitch Kaufman a 2 de janeiro de 1896, em Bialystok, na Polônia (anexada à Rússia czarista).
Jovem, escreveu poemas e romances, estudou música e medicina e criou um laboratório do ouvido (registro e montagem de fonogramas). Seu codinome sugere o som de uma câmera e o perpétuo movimento (Dziga: em ucraniano, "pião", "gente inquieta, com energia"; Vertov: verbo russo, "virar, girar").
Em 1918, em Moscou, engajou-se no Comitê de Cinema do Comissariado do Povo como intertitulador e montador do primeiro cinejornal soviético, o "Cine-Semana". Compilando atualidades e inventando o filme de montagem, fez "O Aniversário da Revolução" (1919), o primeiro longa soviético.
O futurismo e o construtivismo enformam a obra de Vertov. Afinado com Maiakóvski, contou com Ródtchenko em fotomontagens e diagramações. Sintonizado, participou do fervor "agit-prop".
Formou com a mulher Elizaveta Svilova e o irmão Mikhail Kaufman o grupo dos Kinoks. Assinou manifestos em revistas de vanguarda. "Nós" ("Kinophot", nº 1, 1922) postula "a morte da cinematografia" como "indispensável para que viva a arte cinematográfica". "Kinoks-Revolução" ("Lef", nº 3, 1923) crê na "câmera como cine-olho perfeito" e na montagem como decifradora do desconhecido.
Seus conceitos "cine-olho" e "vida de improviso" correspondem a um contato mais concreto com o real, um maior controle. "Kino-Glaz - A Vida de Improviso" (1924) usa ousados métodos de filmagem e montagem.
Envolvido em polêmicas e não admitindo abdicar das idéias inovadoras, Vertov perdeu os meios de produzir os projetos. Passou então a valer-se de encomendas para fazer seu cinema.
Para Moscou, fez "Avante, Soviete!" (1926), cuja montagem por vagas progressivas (às imagens recorrentes intercalam-se imagens novas, movendo-se em espiral) acompanha o tema das mudanças. "A Sexta Parte do Mundo" (1926), destinado ao Comissariado do Povo para o Comércio Exterior, é um "cine-poema lírico" sobre a vasta paisagem do país.
O cinema ainda não atingira três décadas e a capacidade de Vertov renová-lo a cada filme incomodava o imaturo ambiente. Em 1928, demitido da Goskino (Moscou), partiu para os estúdios de Kiev (Vufku), onde produziu obras ambiciosas.
"O Décimo Primeiro Ano" (1928), ode à construção do socialismo na Ucrânia, concebido como o pensamento escrito para os olhos, continha fortes motivos para desorientar a crítica mais esclarecida, pois Vertov refinara o que a maioria nele repudiava: o "formalismo".
"O Homem da Câmera" (1929) é um ensaio exaustivo sobre a matriz do cinema (filmagem, montagem, projeção), motriz da vida em movimento. Para Annette Michelson, "Vertov abandonou o didático pelo maiêutico", fazendo "uma teoria do cinema como investigação epistemológica".
"Entusiasmo" ou "Sinfonia de Donbass" (1930), seu primeiro e pioneiro filme sonoro, trata dos esforços da região nas metas do Plano Quinquenal. É um arrojado lavor do sincronismo disjuntivo e subversivo imagem/som.
Despedido para Moscou, fez no estúdio Mejrabpomkino "Três Cantos Sobre Lênin" (1934), ponto alto de suas pesquisas nos domínios audiovisuais. Vertov levou dez anos realizando este filme, que lhe valeu a concessão da Ordem da Estrela Vermelha e paradoxalmente conduziu-o ao ostracismo.
Para Vertov, a montagem, privilegiada, é a organização no tempo e no espaço dos fragmentos filmados da realidade. A teoria dos intervalos conjuga movimentos, estruturando as passagens entre as imagens.
No front da "Lef", Vertov teve em Maiakóvski e Chklovski aliados contra Eisenstein (o filme de montagem x o filme representado). Apesar de partilhar o princípio do choque dialético, não há em Vertov sequência de planos cujo sentido esteja, quase exclusivamente, na sua justaposição. Sua montagem lavra na esfera da percepção. Não é abstrata ou conceitual. É uma organização da percepção.
Recrudesceu o regime do realismo socialista. Adverso a Vertov, acentuou-se a sistemática de recusas, acusado do supremo "erro formalista" (exaltar a forma estética de uma obra acima de seu conteúdo ideológico). Seu diário traz o amargor pelo embargo à sua obra, truncada.
Seus filmes tornaram-se doutrinais, mas ele não caiu nas graças do poder. Como pertenceu à vanguarda "degenerada", atacada por Jdanov, permaneceu "persona non grata" pelo resto da vida. Mas, mesmo um filme como "Acalanto" (1937), produzido durante o período de euforia stalinista (com todo o ranço do sorriso de então), conserva o vigor da montagem vertoviana (com seus encadeamentos rimados e ritmados de imagens).
Vertov influenciou o documentário de 20/30, o "cinéma-vérité", o metacinema da Nouvelle Vague, as discussões marxistas de "Cinéthique" e "Cahiers du Cinéma", os filmes políticos do Terceiro Mundo, a vanguarda estrutural de 60/70 e profetizou os meios de comunicação de massa. Ao fundar sua cooperativa de cinema militante, Godard batizou-a de Grupo Dziga Vertov.
Vertov foi um dos que mais defendeu a bandeira do específico fílmico. Fez "filmes necessários, indispensáveis, voltados para a vida e exigidos pela vida". Daí vemos "o amor pelo homem vivo" (seus pensamentos, ações, comportamentos, emoções). Para Michelson, "Vertov mapearia uma mudança de articulação de uma visão de mundo abrangente e dialética para a exploração do terreno da própria consciência".
Cinema-limite, o de Vertov. Seu caráter prospectivo se projeta: "Acreditamos ser nosso dever não fazer apenas filme de grande consumo, mas também filmes que engendrem filmes".
"O caminho que eu sigo é o mais inexplorado do cinema. Exige esforços inumanos. É o caminho mais ingrato."
Vórtice do cinema soviético, Vertov, caído no esquecimento, morreu de câncer ("a história de minha doença é a história dos inconvenientes, das humilhações e dos choques nervosos causados pela minha recusa em abandonar o cinema poético e documental"), a 12 de fevereiro de 1954, em Moscou. Nos diários, escreveu: "Será possível morrer de fome, não de fome física, mas de fome criadora?". O próprio respondeu: "Sim".

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