São Paulo, quarta-feira, 31 de janeiro de 1996
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Drogas em discussão

A idéia do governador do Rio de Janeiro, Marcello Alencar (PSDB), de realizar um plebiscito nacional para decidir acerca da descriminação das drogas parece muito mais uma jogada de marketing do que uma proposta realista.
Em primeiro lugar, o custo de uma consulta popular acerca de um tema certamente não prioritário jamais justificaria a empreitada. Ainda que se considerem outras possibilidades, como realizar o plebiscito junto com as próximas eleições municipais ou submeter outros temas polêmicos ao crivo popular, decisões acerca da política nacional para entorpecentes e substâncias que causem dependência deveriam ser tomadas no âmbito técnico do Ministério da Saúde e não ao sabor dos preconceitos, modismos e todo o moralismo inconsequente que ainda permeia a mentalidade de grandes camadas da população.
Embora drogas como a maconha e a cocaína frequentem quase que ostensivamente as noites das classes médias paulista e carioca, em termos epidemiológicos, o principal problema de abuso de drogas no Brasil está relacionado ao álcool: 10% da população masculina do país é alcooldependente. Tratamentos relacionados ao alcoolismo já representam a segunda maior fonte de despesas do SUS, perdendo apenas para a obstetrícia; apenas 0,5% da população tem problemas com outras drogas.
Não se trata, como é óbvio, de sugerir a proibição do álcool -basta lembrar o desastre que foi a Lei Seca nos EUA- ou de minimizar o problema do abuso de outras drogas -o crack já é considerado uma preocupante epidemia.
A questão da descriminação ou até da legalização, como advogam alguns, está longe de ser um consenso mesmo entre os especialistas. Se hoje o abuso das substâncias ilícitas ainda é relativamente pequeno, quem tem condições de garantir que não cresceria alarmantemente se elas fossem liberadas ou toleradas? De outro lado, é de fato sedutora a hipótese de ver, com a legalização, a morte dos poderosos cartéis de drogas, cujas operações provocam tantos males.
De resto, o Confen (Conselho Federal de Entorpecentes) já tem uma proposta interessante -talvez ainda um pouco tímida- no sentido de modernizar a legislação distinguindo melhor o usuário do traficante. Um plebiscito agora só poderia vir a tumultuar o trâmite normal desse projeto.
Cabe, por fim, questionar os critérios do Confen para distinguir as drogas lícitas das ilícitas. Por que o Santo Daime, poderoso e extremamente tóxico alucinógeno extraído da Banisteriopsis caapi, é permitido, quando o seu princípio ativo, a harmina, produz exatamente o mesmo efeito -o bloqueio da serotonina- que o LSD (que é proibido)? Por que a maconha (Cannabis sativa), droga leve e com comprovado valor na cura do glaucoma e coadjuvante em tratamentos quimioterápicos, não pode ser usada sob supervisão médica?
Como se vê, uma política nacional para os entorpecentes é uma questão altamente complexa e técnica que de fato necessita de uma profunda e ampla reformulação. O debate, contudo, tem de ser também ele técnico e isento de paixões e preconceitos.

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