São Paulo, domingo, 6 de outubro de 1996
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Novas vibrações

MARIANE COMPARATO

O saxofonista James Carter se apresenta pela primeira vez no Brasil, no Free Jazz Festival, nesta sexta-feira. Com apenas 27 anos, ele surpreende pela versatilidade e seu estilo nada convencional de tocar
"Apenas toco de acordo com o que estou sentindo, para mim é algo mais espiritual"
O Free Jazz Festival deste ano traz um saxofonista multifacetado. Quando perguntado sobre qual é o seu estilo, James Carter, 27, responde: "Apenas toco de acordo com o que estou sentindo, para mim é algo mais espiritual".
De fato, Carter mistura estilos tradicionais, como bebop e swing, com outros recentes, como hip-hop e rap, e reinventa um estilo próprio. "Não gosto de rótulos", diz.
Além disso, ele toca nada menos do que sete instrumentos -e bem-: quatro tipos de saxofone (barítono, tenor, alto e soprano), flauta, clarone e clarinete.
Na verdade, ele é apaixonado por instrumentos. Sua coleção conta com mais de 60. "Eles vêm de lugares muito diferentes. Alguns são dos anos vinte", diz.
O saxofonista saiu cedo (aos 19 anos) de sua cidade natal, Detroit, e instalou-se em Nova York. "As coisas estavam ficando ruins em Detroit. Se eu tivesse ficado por lá eu não teria aprendido tanto quanto o que sei hoje."
Com quatro álbuns lançados, Carter pode ser considerado um novo sopro no jazz. Seu último disco, "Conversin' With the Elders", traz releituras de músicas de John Coltrane, Lester Young e Charlie Parker. E ele parece sempre estar improvisando. O ouvinte atento vai perceber que, no meio de uma música, Carter insere melodias conhecidas por pura diversão.
Ele também convida instrumentalistas consagrados para tocar suas próprias composições: os trompetistas Harry "Sweets" Edison (tocou com Billie Holiday) e Lester Bowie e o saxofonista Buddy Tate (integrava a banda de Count Basie), por exemplo.
"Tocar algo novo com eles é uma lição de história. Todo o projeto 'Conversin' With the Elders' é sobre isso: ligar-se à história passada e trazê-la para o presente", disse Carter à Revista.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista, concedida por Carter de Los Angeles, nos Estados Unidos.

- Sua versão de "Take the 'A' Train", de Duke Ellington, é bem livre. Como você chegou a ela?
- Especialmente no passado, os trens personificavam o movimento das pessoas de ir de um lugar para o outro. Minha versão é mais alegre: tem o apito do trem no início da música. Durante o 'solo', o apito está soprando, como se você estivesse realmente em uma viagem de trem, avisando às pessoas que você está chegando, esse movimento de ir para a frente. Foi isso que eu quis passar. Quando "Take the 'A' Train" foi composta, acho que eles estavam pensando na linha 'A' que passava pelo Harlem, o trem passando devagar, nos trilhos e tal. Agora estamos nessa idade dos jatos, em que não se pode mais pensar em trilhos. Essa é a minha versão.
- Que músicas você pretende tocar por aqui?
- Não sei, depende do que eu estiver sentindo na hora, mas minha banda e eu vamos tentar cobrir uma boa parte do material que já foi gravado em meus discos e já é conhecido. Mas também estamos pensando em tocar coisas que ainda não foram gravadas. Depende das vibrações que eu sentir na hora.
- Você conhece algum compositor brasileiro?
- Sim, conheço João Gilberto, Antônio Carlos Jobim e outros. Gosto do jeito que Joe Henderson revive o contexto brasileiro em suas composições, em seu álbum "Double Rainbow - The Music of Antonio Carlos Jobim". Gosto do som da língua brasileira, sua melodia. Tenho uma história engraçada com música brasileira. Uma vez, tocou o telefone às 4h: era um trote. Atendi, e começou a tocar uma música, parecia uma daquelas que Stan Getz tocava com João Gilberto e Jobim. Aí comecei a ouvir gelo tilintando em um copo e o barulho de um líquido sendo servido. De repente, uma mulher começou a gemer libidinosamente... Quando parecia que estava no auge, desligou...
- O que você acha do jazz que toca o pistonista Wynton Marsalis?
- Acho que ele fica mais no estilo de Duke Ellington, o que é uma tarefa nobre. Mas para mim jazz não se resume a isso. Duke é apenas um jeito particular de uma pessoa tocar, e ele é certamente um dos pilares da música. Admiro Wynton pelo "jazz" que ele vem conseguindo manter com sua banda, como por exemplo quando trabalhou com o "New York City Ballet", em que eu também participei. É muito inspirado em trabalhos do início dos anos 40.
- Como foi representar um saxofonista em "Kansas City", filme de Robert Altman?
- Mais uma vez voltemos ao espírito que não foi detectado nos filmes, quando você pensa em "Bird" e "Lady Sings The Blues". "Round Midnight" é um dos filmes que fica mais perto da realidade. Acho que em "Kansas City" conseguimos de certa forma criar a atmosfera que havia na cidade. Há uma amostra de tudo o que representava a música: Louis Armstrong, três "escolas" de saxofonistas tenores, dentre eles, Ben Webster, meu personagem.
- O que você achou de tocar com Buddy Tate e Harry Edison?
- São pessoas que eu cresci ouvindo suas músicas e ouvindo falar. É incrível ter a oportunidade de falar com eles e identificar-se com coisas que eles pensam. E conseguir tocar com eles melodias que eles já tocam há anos. Então...
- E tocar com Lester Bowie?
- Eu ouvia muito tocar no rádio. Em 88, ele ia tocar em um show na minha cidade. Fui admitido de última hora em uma audição para esse show. Eu estava nervoso: afinal, ia tocar com o fundador da "Art Ensemble of Chicago". Bowie personifica tudo o que aprendemos. Por exemplo, não ter medo do instrumento, tocar com coragem e com seu espírito. Essa foi a mensagem de Lester, que a mídia adora chamar de vanguarda.
- Suas músicas passam a impressão de que você está sempre improvisando.
- Quando componho, me inspiro em coisas que vivi. No álbum "JC on the Set", por exemplo, tem uma música -"Baby Girl Blues"- que se refere a uma ex-namorada minha. No começo, quando estava com ela, a música parecia dizer: "Puxa, que legal, você tem uma namorada". Depois, algumas das coisas que eu sentia ainda estavam ali, mas outras já indicavam a tensão na qual estava entrando a relação. Quando gravamos a música, é claro que a relação já tinha acabado... Há algumas noites, tocamos essa música em um show, e ela parecia mais um protesto contra essa ex-namorada...

James Carter (Free Jazz Festival). Galpão Fábrica: r. Tajipuru, 906, Barra Funda, zona oeste. Tel. 871-3625. Sexta-feira, 11: 19h. Ingressos: R$ 25.

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