São Paulo, segunda-feira, 7 de outubro de 1996
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Planos e gênios

JOÃO SAYAD

Gosto de muitas coisas que não entendo: música, dança, cinema. Homero é maior do que Virgílio? Os Beatles ou Frank Sinatra? Carlos Drummond de Andrade ou Castro Alves? Caetano Veloso ou Francisco Alves?
Gênio é o intérprete sensível ou conceitual do seu tempo. Produz obra-prima não porque tenha descrito da melhor forma possível o seu tempo, contando como funcionava a navegação dos gregos ou a escravidão no Brasil, mas pelo que produziu de universal e de crítico, ainda que estivesse vendo o mundo a partir de outros tempos.
Talvez seja um pulo muito grande, mas quase a mesma coisa se pode dizer dos planos econômicos. Gustavo Franco afirma que os planos econômicos são apenas obras de retórica e de pouca efetividade: uma coleção de propostas mirabolantes que não representa a ação efetiva do governo.
O Plano de Metas de Juscelino Kubitschek é admirável. Não porque tenha adotado a estratégia de substituição de importações. A substituição de importações é anterior e posterior ao plano. Era óbvio que tínhamos de seguir essa estratégia, como vários outros países do mundo.
Os méritos do Plano de Metas vinham da sua capacidade de acelerar o processo que já ocorria na América Latina. De coordenar com equilíbrio o conflito entre industriais importadores e produtores por intermédio dos grupos executivos industriais, nos quais interesses opostos se defrontavam para discutir suas diferenças e chegar à solução aceitável.
O Plano de Metas conseguiu acelerar a implantação de um parque industrial diversificado, competitivo e com poucos excessos em termos de proteção tarifária. A avaliação é do Banco Mundial -por meio de Joel Dean, em livro de 1970 ("Brazil: Industrialization and Trade Policies")- e de muitos analistas da época.
Hoje, a política de substituição de importações se esgotou. Nem por isso o Plano de Metas estava errado ou deixa de ser admirável.
O Paeg, plano do regime militar de 64, foi eficaz a seu modo e em seu tempo. Nacionalizou empresas de telefonia e eletricidade, criou e deu autonomia para as maiores e melhores estatais brasileiras, renegociou a dívida externa, criou a correção monetária.
Deve ser criticado pela implantação da correção monetária? A correção prestou grandes serviços enquanto pôde. As estatais que estão sendo privatizadas foram boas empresas, que instalaram parques produtivos importantes e atualmente cobiçados pelo setor privado.
Não podemos nos enganar: correção monetária e estatais acabaram porque cumpriram, e muito bem, a sua função.
Você não cortou suas costeletas nos anos 70 porque "descobriu" que estava errado. As costeletas simplesmente haviam ficado fora de moda.
Talvez a juventude da década de 80 pensasse que havia descoberto o "fim da moda". Os mais velhos sabiam que a nova moda, moderna, não era tão nova assim: simplesmente passamos a cortar o cabelo como nos anos 40.
Como se compara o Plano Real ao Plano Cavallo? Ambos aproveitaram corretamente a abundância de dólares e o apodrecimento da dívida externa.
O Plano Cavallo é argentino e radical como um tango. Simplesmente acelerou e ordenou o que estava acontecendo -que era a dolarização da economia argentina.
O Plano Real é brasileiro e ganha longe em jeitinho e flexibilidade quando comparado com o argentino -o dólar é "livre", mas não é livre; a conversibilidade do real existe, mas é limitada; a privatização avança, mas lentamente; a Petrobrás não é monopolista, mas permanece estatal. Também tem erros, radicais como os argentinos -o dólar a R$ 0,82, a privatização da Vale do Rio Doce, os juros escorchantes de 1994 e 1995.
Como será que a história vai julgar os planos?
A sobrevalorização do dólar não pode ser criticada. Afinal, esse é o caminho existente nos anos atuais para combater a inflação em um país com péssima distribuição de renda, aspirações democráticas e tradição autoritária, crescente participação política de novos grupos e representação política gelatinosa. Dólar sobrevalorizado é parte integral do Plano Real. Assim como a substituição de importações era parte do Plano de Metas de JK.
O que pode ser criticado é a falta de consciência e de políticas para os problemas decorrentes dessa estratégia: a ausência de política industrial, o obstáculo ideológico que impede investimentos em infra-estrutura e em reforma urbana, a falta de apoio à pesquisa e à tecnologia e, principalmente, a falta de política e de compaixão para com o desemprego.
É lógico que o desemprego tem razões estruturais -a diminuição da indústria, o aparecimento de novas formas de organização, os ganhos de produtividade etc. É verdade, também, que o problema é internacional. Mas esse desemprego francês ou espanhol se soma, aqui, ao velho e grave desemprego brasileiro.
O Plano Real não pode ser criticado pelo que fez para acelerar as tendências que já estavam presentes na economia brasileira.
O criticável é não aproveitar essa paz inflacionária para compensar, equilibrar e atenuar os efeitos desastrosos desta quadra da história econômica, particularmente para um país como o Brasil.

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