São Paulo, quinta-feira, 10 de outubro de 1996
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Bienal consagra arte em família

CELSO FIORAVANTE
DA REPORTAGEM LOCAL

Além de Picasso e Munch, outra grande atração da 23ª Bienal, que vai até o dia 8 de dezembro no parque Ibirapuera, são as artistas-mães que incluíram suas filhas no processo de produção ou na própria obra que apresentam no evento.
São elas a sul-africana Francina Ndimande e sua filha Joyce; a eslovena Petra Varl Simoncic e sua filha Katja; e a irlandesa Alanna O'Kelly e sua filhinha de 10 meses, que, para surpresa dos brasileiros, ainda não tem nome.
"Adorei a língua portuguesa e estou pensando em dar a ela um nome daqui", disse Alanna, que já cogitou os nomes Luana e Janaína.
A artista apresenta na Bienal a videoinstalação "A Beathú", de 18 minutos, que remete às suas três gravidezes e que trabalha com os processos alienatórios e de formação das identidades. Em entrevista à Folha, falou sobre memória, família e preocupações de sua arte.
*
Folha - O que significa "A Beathú" (pronuncia-se "abarú"), nome de sua instalação?
Alanna O'Kelly - "A Beathú" é o verbo irlandês que usamos para "amamentar", "dar comida aos bebês". A raiz desse verbo vem da palavra "vida".
Folha - Quando você começou a pensar nesse trabalho?
Alanna - Comecei há alguns anos. É um trabalho que faz parte de uma série muito maior e mais empenhada.
As imagens do seio e do leite abundante são as mais antigas, de seis anos atrás. As imagens na água têm quatro anos. Os olhos têm tudo a ver com ela (aponta para a filha no colo).
Folha - Que grito é aquele que se ouve na instalação?
Alanna - São sons que eu fiz primeiramente como um lamento. Não um lamento por alguém morto, mas por certas idéias. Um grito para reenergizar e revitalizar.
O lamento não significa um adeus. Talvez seja o adeus para alguma coisa, mas também está tentando trazer algo novo.
Para mim, o grito representa o poder do corpo humano, o poder que cada um de nós temos, assim como é o poder do leite materno. Esse grito tem muitos significados para mim. Um deles é o poder que temos de alimentar uns aos outros. É um discurso sobre a alimentação do espírito, da psique.
Folha - Quando você começou a se preocupar com esse discurso?
Alanna - Eu ainda estava amamentando meu primeiro filho. Ele era enorme, rechonchudo e muito feliz. Estava com 6 meses e nunca havia comido nada sólido, apenas leite materno.
Nesse período ouvi uma notícia sobre uma mulher curda, refugiada nas montanhas, sem comida ou água. Era o caos, a tragédia. Um repórter perguntou à mulher o que ela tinha a dizer. E ela disse que não tinha nada, apenas que estava segurando o filho morto nos braços porque não tinha mais leite para amamentá-lo.
Naquele momento nossas vidas se cruzaram e se igualaram. Eu não tinha respostas, mas tinha muitas questões sobre mim mesma e sobre o papel que eu deveria desempenhar.
Fazendo isso de uma maneira pública, por meio da arte, eu poderia fazer essas mesmas perguntas às outras pessoas.
Folha - O conceito "família" é importante em seu trabalho?
Alanna - Não. A família não é importante em meu trabalho. Não estou interessada no núcleo familiar. Estou interessada em comunidade, em que todos estejam envolvidos em uma comunidade.
Folha - Mas você está interessada em preservar características da cultura irlandesa?
Alanna - Acho que não. Existem muitas coisas que amo na cultura irlandesa e posso ver que estão morrendo. Mas eu acho que é melhor deixar que siga o curso natural das coisas. Quando algo se vai, algo novo pode acontecer.
Agora existe um revival de várias áreas da cultura irlandesa. Mas isso vem de uma paixão, de um interesse das pessoas, e não do governo. Eu confio nas pessoas quando elas pensam por si próprias e não são levadas por terceiros ou por algum tipo de poder.
Folha - O que mais influencia seu trabalho: sua memória individual ou a história coletiva?
Alanna - É difícil dizer. Nesse trabalho existem imagens individuais, ligadas à minha memória, produzidas com uma idéia muito particular em mente.
Trazer esse trabalho a São Paulo foi muito importante. Eu não conheço nada sobre o Brasil, mas esse trabalho fala sobre o corpo e sobre a vida. Em São Paulo, as pessoas podem aceitar essas imagens e questionar o que o trabalho está dizendo e de onde ele vem.
Folha - Esse trabalho não é exclusivamente feminino?
Alanna - Acho que as mulheres vão se identificar muito mais com o trabalho que os homens, porque é a nossa experiência. Mas eu realmente gostaria que os homens se relacionassem. No fundo, também é uma experiência deles.
Folha - Sua preocupação é com a linguagem ou com questões políticas e sociais?
Alanna - Acho que essas discussões se relacionam. Não estou interessada na linguagem das artes como uma questão exclusiva. Estou mais interessada em questões mais humanas, mas minha linguagem é a linguagem das artes, é a linguagem dos que não falam. É como a linguagem da infância, que você pode entender, desde que saiba ouvi-la.

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