São Paulo, quinta-feira, 10 de outubro de 1996
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O silêncio de Raduan

OTAVIO FRIAS FILHO

Por que Raduan Nassar parou de escrever? Essa pergunta com ares novelescos continua um enigma inexplicado. Depois de se preparar por 20 anos, a consagração veio junto com a estréia no lançamento do romance "Lavoura Arcaica" (1975), seguido de outro êxito atordoante, a novela "Um Copo de Cólera" (1978).
No auge de uma carreira recém-começada, as traduções de vento em popa, quando seus leitores antecipavam proezas ainda maiores que estavam por vir, de repente o escritor paulista anunciou que passava a arar outras terras, trocava a literatura pela agricultura, o que foi festejado como mais uma metáfora do mestre.
Mas não, a decisão era literal, quer dizer, agrícola. Raduan Nassar se exilou num sítio onde se ocupa até hoje de sementes, tratores, fertilizantes. Fala de literatura o mínimo possível, escarnece de escritores e críticos, e logo volta ao assunto principal: o preço do milho, o problema do caruncho, a chegada da entressafra.
Golpe de marketing numa época em que a literatura, estertorante, precisa fazer dos escritores personagens de showbiz, com as esquisitices reclusas de um Michael Jackson -foi o que muitos pensaram. Nada disso; é para que o deixem em paz, ele está escrevendo sua obra definitiva, respondiam outros.
O silêncio de Raduan virou uma encantação, um mistério quase policial. Já teria dito o que tinha a dizer? Dedicava-se agora a uma espécie de antiliteratura, a fim de denunciar, pelo mutismo, o embuste das vaidades literárias, da indústria da fama? Descobrira algo que não valia a pena nem seria possível verter em palavras?
É possível, até, que a decisão não fosse uma decisão, mas de início uma brincadeira, um capricho temporário a que o escritor se viu acorrentado conforme tomava vulto o mito do silêncio, que já não podia ser quebrado sem o risco de uma desmoralização provavelmente embaraçosa, talvez irreversível.
Recém-lançados pelo Instituto Moreira Salles, os "Cadernos de Literatura Brasileira" dedicam seu segundo número à obra, não mais que 250 páginas, de Raduan Nassar. Não há solução para o enigma, nem é esse o objetivo da publicação. Cada homenagem parece mais um tijolo na cela onde está preso o escritor.
O silêncio de Raduan é ele mesmo um conto, como as histórias de Henry James sobre escritores, onde o autor aparece soterrado pelo que já escreveu, ou de tal forma assoberbado pelo sucesso mundano que não tem mais tempo para escrever, ou ainda incapaz de fixar no papel o que deveria, mas não conseguiu, ter escrito.
Suicídios autorais, tanto quanto os que ocorrem no "livrão", como Raduan Nassar chama o grande livro da vida, não admitem explicações, o gesto as dissolve em irrelevância. Nojo pela vida mental, desejos de inocência irrecuperável, de reverter da arte para a vida -depois e além da literatura fica o insondável.

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