São Paulo, sexta-feira, 11 de outubro de 1996
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Uma vanguarda com assunto

MODESTO CARONE

na sacada do seu apartamento em Copacabana, Otto Maria Carpeaux diz que Thomas Bernhard é o melhor escritor austríaco do momento. O ano é 1970-71, e o crítico austro-brasileiro já está sob a censura da ditadura militar. É possível que fosse esse um dos motivos não-verbalizados de uma preferência tão marcada. Pois, apesar de Bernhard não ter ainda escrito obras decisivas como "O Sobrinho de Wittgenstein", "Concreto", "Árvores Abatidas", "Extinção", sem contar os cinco livros de memórias e as peças de impacto, já eram sensíveis os sinais de que se tratava de um artista avançado e demolidor, capaz de abalar o público e a crítica na sua decisão de só ir "na direção oposta", o que sem dúvida fazia diferença para a personalidade exigente e impulsiva de Carpeaux, que, tendo escapado ao nazismo, estava mais uma vez às voltas com a truculência dos regimes de exceção.
O alvo preferido de Bernhard sempre foi o nacional-socialismo e o período do pós-guerra na Áustria: da sua perspectiva radical, o catolicismo hegemônico no país era análogo à época hitlerista, com a qual manteve uma relação de continuidade. Mas não só isso como também a idolatria esnobe da cultura, que a torna classista e fetichizada -alienação que detona a fúria do escritor e alimenta a "arte do exagero" que incandesce a sua ficção. Não surpreende que os disparos feitos pelas figuras de Bernhard acertem em tudo o que pode lembrar um consenso sem crítica, seja a cidade de Salzburg, a Academia Alemã de Língua e Literatura ou Madre Tereza de Calcutá. Um exemplo desse "maneirismo da irritação artisticamente produtiva" é oferecido pelos petardos que Reger, o personagem central de "Velhos Mestres" ("Alte Meister", 1985), desfere contra Martin Heidegger: "o filósofo de pantufas e touca-de-dormir dos alemães", "ridículo filisteu nacional-socialista de bombachas", "cabeça-kitsch", "episódio repulsivo da filosofia alemã", "vaca filosófica prenhe que ao longo de décadas largou sua bosta coquete na Floresta Negra"... A xingação dura dez páginas e nelas a retórica do insulto -marca registrada deste neto rebelde de um intelectual anarco-comunista de Salzburg- é empregada com um virtuosismo que faria inveja a Oswald de Andrade, um dos nossos mais categorizados profissionais da provocação.
Mas nem tudo fica por conta do sarcasmo selvagem do romancista, já que a maioria dos seus livros trata do crime, da doença, do fracasso e da morte. Essa "ruptura com o mundo" se consolida já no primeiro romance, "Geada" ("Frost", 1963), com o qual Bernhard entra na consciência da literatura contemporânea -e não só alemã. Nele o protagonista, o pintor Strauch, afirma que "o suicídio faz parte da minha natureza" e o cenário apocalíptico dessa experiência é dado pela crueldade e agressão da natureza nas montanhas (na direção oposta, por exemplo, da libido alpina da cineasta nazista Leni Riefensthal). Aqui, como em "Perturbação" ("Verstõrung", 1967), a arte localista, invariavelmente piegas e de joelhos diante da "bela paisagem", é transformada em idílio negro e o sentimentalismo goiaba atropelado pela noção de que tudo é grotesco se pensado a partir da morte. Mesmo a utopia de que o isolamento e a solidão produzem a obra do espírito é desqualificada na medida em que nas histórias de Bernhard artistas ou homens de ciência podem sucumbir ao ridículo. Para mencionar alguns casos, em "Fábrica de Cal" ("Das Kalkwerk", 1970), o herói Konrad abandona tudo para finalmente escrever seu estudo sobre a audição; quando chega lá, mata a mulher e enlouquece. "Correção" ("Korrektur", 1975) narra a desventura de Roithamer -personagem obviamente calcado no filósofo Ludwig Wittgenstein- que projeta para a irmã um cone de cimento como a construção ideal; ao ver o projeto realizado, a irmã morre e Roithamer se suicida. O narrador de "Concreto" ("Beton", 1982) é um escritor incestuoso, incapaz de pôr no papel a primeira frase de um texto por causa da presença da irmã.
Vale lembrar que alguns vêem na "tipologia do fracasso" o elo entre Bernhard e Beckett, não só em relação à prosa como também ao teatro (o autor austríaco tem mais de 20 peças). De fato não existe nesta obra qualquer promessa de felicidade coletiva: a idéia de "extinção", objetivada no último romance -que tem justamente esse título ("Auslõschung", 1986)-, funciona como metáfora da negatividade: nela se aglutinam o potencial de destruição do mundo administrado e as fantasias de aniquilamento do narrador e dos personagens.
É curioso que, à medida que maldiz a história do mundo, o narrador dá seguimento a ela. As palavras e as frases, com que ele paga na mesma moeda o seu infortúnio e o daqueles por quem se interessa, são as cadeias com as quais ele próprio parece preso àquilo que condena com o ímpeto da simplificação polêmica. Mas tudo faz crer que não é bem assim, pois desta tábula rasa por atacado resta a arte verbal incumbida de executar a tarefa do desmantelamento. Escritores da têmpera de Bernhard, comprometidos com o seu tempo, dão a impressão de que só funcionam nessa situação-limite -como se a literatura que ainda conta se vingasse de um mundo que não precisa dela.
A complexidade da ficção de Bernhard se manifesta a partir da frase, que trabalha em parafuso, realizando variações intermináveis através de repetições, perífrases e permutas. A sensação que se tem diante da "cascata de palavras" é paradoxal, uma vez que o esforço máximo de simplicidade no plano do conteúdo é veiculado por uma energia sintática que parece não ter limites. A composição da narrativa segue a sofisticação da escrita -se é que dá para separar uma da outra. Sirva de exemplo "O Náufrago" ("Der Untergeher", 1982), uma das obras-primas de Bernhard, publicada este ano pela Companhia das Letras e traduzida com brio pelo germanista Sérgio Tellaroli.
O romance é uma variante das notações autocentradas do autor, onde os monólogos de quem narra fundem o material autêntico com o inventado, no caso a figura do pianista canadense Glenn Gould, morto em 1982. A narrativa entrelaça três destinos artísticos -o do narrador e o de seus amigos Wertheimer e Glenn Gould-, em três planos temporais apresentados sincronicamente: a história anterior, o momento da recordação dessa história e o ponto em que a lembrança é relatada. A perspectiva escolhida é a do narrador que acumula a função de personagem, mas o leitor tem de se haver com uma particularidade bem mais essencial, pois não é o andamento da ação e sim o ritmo das repetições que estrutura as sequências narrativas.
Ao entrar numa estalagem da Áustria, o narrador lembra-se dos seus dois amigos, artistas como ele. A ação de primeiro plano, que é quase estática, serve de sustentação externa para o relato das memórias e pensamentos do narrador naquele instante: há 28 anos, os três pianistas se conheceram no Mozarteum de Salzburg, durante um curso de Horowitz. Na sua ambição de só valorizarem "o máximo", eles sentem-se espiritualmente irmanados. Mas já naquela época a sina dos três tinha sido decidida. Wertheimer, que ouve por trás de uma porta Glenn Gould tocar a ária das "Variações Goldberg" de Bach, é nesse momento "atingido mortalmente" como artista. Embora ele inicie uma carreira de pianista extremamente bem-sucedida, a consciência da "genialidade inalcançável" do amigo Glenn vai fazê-lo abandonar o piano. "O náufrago" -como Glenn Gould descrevia em vida Wertheimer- vai morar em Viena com a irmã e, financeiramente protegido por uma imensa herança familiar, dedicar-se às "ciências do espírito". O narrador, por seu lado, depois daquele verão de 1953 em Salzburg, tira as suas conclusões do encontro com o gênio de Gould e dá de presente o seu Steinway, empenhando-se num ensaio sobre a arte de Glenn Gould, que até agora não foi concluído. Gould -esse espanto mundial do piano- atinge a perfeição máxima e aos 51 anos (a idade com que Wertheimer se mata) morre sobre o piano na maior solidão, quando está tocando as "Variações Goldberg". Wertheimer, depois que a irmã se casa com um industrial e vai morar com ele na Suíça, retira-se para um pavilhão de caça em Traich -o lugar onde também se encontra a estalagem à qual o narrador chega no início do livro. Lá ele recebe a notícia da morte de Gould, viaja para a Suíça e enforca-se numa árvore em frente à casa da irmã. Mas o seu suicídio não foi desencadeado pelo abandono da irmã, que sempre o protegeu, e sim pela morte de Glenn Gould: "Wertheimer caiu na 'armadilha da sua vida' ao matricular-se no curso de Horowitz, pensei. A armadilha o pegou no momento em que ele ouviu Glenn tocar pela primeira vez, pensei. E dessa armadilha para a vida toda Wertheimer nunca mais escapou".
A trama de relações se complica porque o narrador inclui a si mesmo na "leitura" que faz do suicídio do amigo: "Esse desmoronamento do seu projeto de artista foi obra dele próprio, tendo sido antes desencadeado por minha decisão de me afastar em definitivo do meu Steinway e da minha carreira de virtuose (...). O competidor competia comigo em tudo, mesmo em situações que lhe eram somente adversas, pensei. Sempre fui apenas e tão-só prejudicial a Wertheimer e essa acusação não vou conseguir tirar da cabeça enquanto viver, pensei". Mas além de destruir Wertheimer, Glenn também "destrói" o narrador, segundo ele mesmo afirma: "Quando encontramos uma pessoa como Glenn estamos perdidos ou salvos, penso eu; no nosso caso Glenn nos destruiu, pensei". Quanto a Glenn Gould, Wertheimer já havia percebido, antes de morrer, que ele aniquilava a própria personalidade em prol da genialidade: "Homens como Glenn acabavam por se tornar máquinas de arte, não tendo nada mais em comum com um ser humano".
Voltando ao plano do relato, o narrador vai ao enterro de Wertheimer na Suíça e na volta, depois de instalado na estalagem de Traich, dirige-se ao pavilhão de caça do amigo morto para recolher seus "escritos" -milhares de pedaços de papel com aforismos de conteúdo matemático-filosófico. Mas no pavilhão ele fica sabendo que, pouco antes de ter ido à Suíça para se suicidar, Wertheimer havia mandado buscar um piano desafinado e imprestável e convidado seus antigos colegas de conservatório; então, após queimar todas as suas anotações, pôs-se a tocar Bach até desmaiar, enquanto soavam no toca-discos as "Variações Goldberg" por Glenn Gould, a encarnação inatingível do gênio pianístico.
A distância do narrador em relação a Wertheimer e Gould prova ser uma estratégia de sobrevivência. Ele não é nem um pouco menos radical do que seus amigos, mas consegue permanecer fora de alcance do "perigo mortal" por meio da reflexão. Assim é também agora: pensando em Wertheimer, o narrador chega à idéia definitiva do ensaio "Sobre Glenn Gould" e o trabalho de memória (que não é outro senão o livro que está sendo lido) funde-se com aquele estudo: "Se eu de fato tentar novamente escrever meu retrato de Glenn Gould, pensei, vou ter de incluir nele o seu retrato de Wertheimer também: difícil dizer quem será o centro dessa descrição, Glenn Gould ou Wertheimer, pensei. Meu ponto de partida será Glenn Gould, as 'Variações Goldberg' e o 'Cravo Bem Temperado', mas no que me diz respeito Wertheimer desempenhará um papel decisivo, pois para mim Glenn Gould sempre esteve ligado a Wertheimer em todos os aspectos, assim como Wertheimer a Glenn Gould e no fim de contas talvez Glenn Gould tenha desempenhado o papel mais importante do que o contrário".
Não é difícil reconhecer que as "fugas musicais" do narrador, enlaçando os temas "Glenn Gould" e "Wertheimer", que derivam um do outro e aparecem balizados por meios gramaticais ("ele disse", "eu pensei") servem em última instância à autocaracterização do protagonista, que emerge da reprodução sucessiva das duas vozes em registros diferentes e compõe o perfil do romance. É esse modo de organização que permite a Bernhard não só rearticular motivos centrais da sua obra -a "máquina da existência" que destrói a vida, o suicídio e a perfeição como última manifestação possível do indivíduo-, como também suprimir as fronteiras entre fantasia e realidade dentro da ficção. Mas isso evidentemente pressupõe a aceitação do caráter absoluto da arte no trabalho de Bernhard.

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