São Paulo, sexta-feira, 11 de outubro de 1996
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O mapa da corte

FLÁVIO DE CAMPOS

a corte medieval portuguesa custou a despertar o interesse da história social. Reconstituições simplificadoras, vinculadas a preocupações institucionais, vulgarizaram-na como o lugar das tarefas burocráticas e do caricato parasitismo cortesão. Ressaltaram o sentido evolutivo das instituições tardo-medievais, de onde se fez emergir o Estado moderno e que culminaria na separação de poderes e no ordenamento jurídico contemporâneos.
O estudo de Rita Costa Gomes pode ser considerado como um acerto de contas com tal historiografia, cujos insignes expoentes ibéricos (Sánchez-Albornoz, Valdeavellano, Gama Barros, Paulo Merêa e tantos outros) insistiram em imprimir um caráter prospectivo ao estudo da corte, reduzindo-a a seus traços institucionais. Com modelos interpretativos e conceituais provenientes da sociologia e da antropologia, o objetivo da autora é apresentar a corte dos reis portugueses como formação social particular. Indissociável da monarquia, ela é mais do que a simples somatória dos mecanismos institucionais e dos aspectos domésticos da casa do rei. É um complexo meio social -uma sociedade de corte- composto de vários grupos funcionais, que cercam o monarca e que partilham os mesmos espaços materiais e simbólicos, possibilitando a existência da realeza.
A influência de Norbert Elias, assumida pela autora, é evidente no recorte do objeto de estudo e na carga conceitual que permite seu exame. Contudo, como se sabe, as reflexões do festejado estudioso alemão a respeito do processo civilizador -que tem na sociedade de corte seu ponto axial- foram marcadas por notória perspectiva evolutiva. O minucioso trato da vasta documentação e a ágil disposição da bibliografia especializada (surpreende, no entanto, a ausência de J. Huizinga) permitem à autora desvencilhar-se desse embaraço e recuperar, com sucesso, a historicidade da corte portuguesa nos séculos 14 e 15.
Com tal intuito, o resgate da multiplicidade do serviço do rei é efetuado à luz dos conceitos definidores da época e pela reconstituição das atividades funcionais da corte régia. Respeitando a lógica que presidia sua organização interna, que não divisava com nitidez os limites entre o público e o privado, o leitor é conduzido ao interior da tripartição básica do organismo cortesão -câmara, aula e capela régias-, cujas responsabilidades financeiras, burocráticas e administrativas encontravam-se imbricadas nas domésticas obrigações da casa do rei.
A rigorosa preocupação com o pormenor torna um tanto árida a descrição das fronteiras internas da corte. Os cargos e funções palacianos, constitutivos de um verdadeiro sistema de papéis ordenado e vinculado à figura do rei, são minuciosamente apresentados em suas hierarquias e subdivisões internas e cotejados com outros centros similares europeus. Exibem-se o conjunto heterogêneo de indivíduos que cerca o rei e suas formas distintivas, seus modos de ser e agir. Emergem daí territórios delimitados para determinados grupos -como, por exemplo, os que se mantêm ligados às funções femininas, aqueles destinados a judeus e mouros ou áreas reservadas exclusivamente à nobreza e ao clero- e espaços instáveis, disputados por diferentes agentes sociais. Às inúmeras distinções da sociedade de então sobrepõem-se as condições dos que vivem da mercê do rei (criados, moradores e vassalos), cuja vivência cortesã acarreta alterações em seus comportamentos habituais.
O preciso traçado dos contornos da corte é capaz, ainda, de apreender seus movimentos internos e a intensidade da vida coletiva. Tanto em relação às possibilidades de controle familiar das funções áulicas -e suas substituições decorrentes das circunstâncias políticas-, quanto ao movimento mais geral de especialização de determinadas atividades, que acabaria por estender o grau de importância da câmara régia no século 15. Em termos conjunturais, o sentido geral, no período examinado, é o da afirmação da corte como modelo de sociabilidade perante as casas nobres e eclesiásticas. De uma situação de relativo equilíbrio entre diversos centros no século 14 e de certa pluralidade de cortes no início da centúria seguinte, a corte medieval portuguesa alcançaria sua maturidade no reinado de d. Afonso 5º, impondo-se como principal força centrípeta.
Além de um complexo de serviços e funções, ligado à monarquia, a corte também é concebida como um conjunto de práticas territoriais que interfere na sua estruturação interna e que altera o cotidiano das regiões por onde passa. Movimentam a corte o ciclo das estações, o exercício da guerra e a eventualidade de epidemias. No entanto, o impulso maior é conferido pelas necessidades políticas de melhor conhecimento e controle sobre o território. A apreensão simbólica do reino, executada a partir da itinerância régia, entremeia-se com a separação do membro da corte de suas raízes, num processo que sublinha sua dependência e submissão ao poder real. Revelam-se assim as preferências da geografia cortesã: o centro do reino e as regiões litorâneas, com forte atração pelas áreas urbanas. Destas, Lisboa desponta como a cidade mais visitada ao final da Idade Média -quando os deslocamentos sofrem sensível redução-, consolidando-se, posteriormente, como capital.
Um último elemento estruturante da existência cortesã é o das práticas culturais ordenadoras do tempo coletivo e dos serviços da corte. Ritos e cerimônias, aspectos fundamentais -mas não únicos- das formas de vida palaciana, são tidos como utensílios para a compreensão da realeza. Mas, ao contrário dos costumeiros abusos cometidos com a aplicação inadvertida do conceito de representação, a interpretação da autora segue o modelo mais restritivo de Ernst Cassirer. A ação ritual não envolveria a teatralização dos acontecimentos e dos papéis da vida cortesã, mas seria sua expressão. As cerimônias não seriam portadoras de mensagens veladas a decodificar e sim pertencentes a um sistema cerimonial estreitamente vinculado aos cargos e funções da corte, cujo sentido fundamental é a continuidade da realeza e a reprodução da sociedade de corte.
O livro de Rita Costa Gomes, a despeito de uma excessiva preocupação descritiva -que em vários momentos obscurece suas refinadas reflexões sobre os comportamentos e os modos de ser dos membros da corte-, é mais do que o simples traçado de linhas de força desse complexo meio social, como apontou com injustificada modéstia. É pedra angular dos futuros trabalhos sobre a história portuguesa do final da Idade Média.

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